quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 17

Pagina 17 – Capitulo 02.

Por Clara...

Os dias no Empório da Economia têm sido mais leves, e posso até arriscar dizer que eu e Verônica estamos nos dando bem — ou no mínimo, convivendo sem nenhuma faísca prestes a explodir. Volta e meia soltamos uma alfinetada, uma mais afiada que a outra, claro, mas por algum motivo estranho — quase cômico — acabamos nos aproximando feito ímãs. Às vezes ela chega com aquele olhar crítico, fala algo que me dá vontade de revirar os olhos até o outro lado do mercado… mas minutos depois estamos rindo ou dividindo um comentário sarcástico sobre algum cliente peculiar. É esquisito. Mas, confesso, até que tem seu charme.

Ultimamente tenho escutado alguns burburinhos pelos cantos sobre a proposta de saída que a Verônica ofereceu para quem já pensava em deixar o mercado. Confesso que me bate uma pontinha de tristeza ao ouvir certos nomes cogitando ir embora. Apesar de tudo, uma coisa é inegável: ela está mudando esse lugar — e para melhor. As regras mais claras, o ambiente mais organizado, até o clima entre os funcionários parece mais leve (na medida do possível, claro). Pode ser que ela ainda carregue aquele jeitão duro e direto, mas algo nela — ou talvez nas intenções dela — parece estar diferente. E eu, sinceramente, tô começando a gostar disso.

Com esses pensamentos girando na minha cabeça, me vi distraída demais para continuar ali parada. Virei para Juliana, minha colega de caixa, e disse num tom leve:

— Vou ali na cozinha encher minha garrafinha, já volto.

Ela apenas assentiu com a cabeça, focada em passar as compras da senhora do cabelo azul. Me afastei em direção ao fundo do mercado, desviando dos carrinhos, embalada por um silêncio interno que fazia mais barulho que os próprios corredores. Precisava de uns minutos longe da frente da loja... e de um gole d’água pra esfriar os pensamentos.

Clara se aproximou da pequena cozinha dos fundos com a garrafinha em mãos, ainda distraída com os próprios pensamentos. Abriu a torneira, deixando a água correr um pouco antes de começar a encher. Enquanto observava o fluxo transparente preencher o plástico, vozes abafadas chamaram sua atenção.

— Eu não tô pedindo tua opinião, Augusto — a voz firme de Verônica atravessou a porta mal fechada do escritório ao lado.

Eu, instintivamente, congelei meus movimentos e abaixo um pouco o corpo, como se isso me tornasse invisível.

— Eles estão aqui há anos, Verônica! — disse Augusto, levantando ligeiramente a voz, mas ainda tentando manter o controle. — Não dá pra simplesmente descartar assim, como se fossem peças quebradas!

— Não são peças quebradas, Augusto — retrucou Verônica, apoiando as mãos na mesa e encarando o homem com firmeza —, mas se tornam um peso morto quando param de se mover. E o pior: contaminam os outros com esse marasmo. Eu tô vendo isso acontecer, todos os dias.

— Mas você não pode julgar anos de trabalho por algumas semanas de adaptação. Essa mudança tá sendo rápida, radical até. Dá um tempo pro pessoal se ajustar.

Verônica cruzou os braços, impaciente.

— Você viu os relatórios? Viu quem mais falta, quem mais enrola, quem vive de atestado falso ou justificativas esfarrapadas? Porque eu vi. E sabe o que mais vi? A mesma meia dúzia sabotando qualquer tentativa de mudança. Se fosse um ou dois dias de adaptação, eu entenderia. Mas isso é resistência passiva, Augusto. É descomprometimento crônico.

Augusto suspirou, frustrado, passando a mão pelos cabelos.

Mal terminei de encher minha garrafinha, ainda com os dedos úmidos no plástico gelado, escuto a porta do escritório se abrir com força — não era preciso ver para saber que Verônica havia saído dali como um furacão. Os saltos dela ecoam pelo corredor como marteladas no chão. Logo em seguida, Augusto aparece, bufando feito um touro. Seus passos pesados param no meio do corredor, bem diante do bebedouro onde estou, mas ele não me vê. Seus olhos estão turvos de raiva, fixos em algum ponto do teto.

— Essa mulher vai destruir tudo que eu construí aqui! — ele rosna para si mesmo, apertando os punhos com tanta força que os nós dos dedos ficam brancos. — Quem ela pensa que é pra mexer assim no que eu sempre administrei?

Ele começa a andar em círculos curtos, como se estivesse brigando com o próprio orgulho.

— Agora quer cortar todo mundo como se fosse heroína… justo agora que eu consegui deixar tudo do meu jeito. — Cospe as palavras com amargura. — Tirar aqueles funcionários é perder as únicas peças que ainda me obedecem… e o pior: sem nem me consultar de verdade.

Ele ri, mas sem humor algum.

— E no final, quem é que vai ter que cobrir as pontas? Eu. Sempre eu. Ridículo isso…

Fico paralisada por um instante. Não tanto pelo que ouvi, mas por finalmente enxergar com clareza quem é Augusto quando ninguém está olhando. Ego ferido, sede de controle… e medo de perder o trono que sempre ocupou por conveniência, e não por competência.

Saio dali sem fazer barulho, o coração ainda acelerado. A gestão de Verônica pode ser dura, mas agora entendo — ela está tentando limpar o que muitos fingiram que não estava sujo.

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