Pagina 17 – Capitulo 02.
Por
Clara...
Os dias
no Empório da Economia têm sido mais leves, e posso até arriscar dizer que eu e
Verônica estamos nos dando bem — ou no mínimo, convivendo sem nenhuma faísca
prestes a explodir. Volta e meia soltamos uma alfinetada, uma mais afiada que a
outra, claro, mas por algum motivo estranho — quase cômico — acabamos nos
aproximando feito ímãs. Às vezes ela chega com aquele olhar crítico, fala algo
que me dá vontade de revirar os olhos até o outro lado do mercado… mas minutos
depois estamos rindo ou dividindo um comentário sarcástico sobre algum cliente
peculiar. É esquisito. Mas, confesso, até que tem seu charme.
Ultimamente
tenho escutado alguns burburinhos pelos cantos sobre a proposta de saída que a
Verônica ofereceu para quem já pensava em deixar o mercado. Confesso que me
bate uma pontinha de tristeza ao ouvir certos nomes cogitando ir embora. Apesar
de tudo, uma coisa é inegável: ela está mudando esse lugar — e para melhor. As
regras mais claras, o ambiente mais organizado, até o clima entre os
funcionários parece mais leve (na medida do possível, claro). Pode ser que ela
ainda carregue aquele jeitão duro e direto, mas algo nela — ou talvez nas
intenções dela — parece estar diferente. E eu, sinceramente, tô começando a
gostar disso.
Com esses
pensamentos girando na minha cabeça, me vi distraída demais para continuar ali
parada. Virei para Juliana, minha colega de caixa, e disse num tom leve:
— Vou ali
na cozinha encher minha garrafinha, já volto.
Ela
apenas assentiu com a cabeça, focada em passar as compras da senhora do cabelo
azul. Me afastei em direção ao fundo do mercado, desviando dos carrinhos,
embalada por um silêncio interno que fazia mais barulho que os próprios
corredores. Precisava de uns minutos longe da frente da loja... e de um gole
d’água pra esfriar os pensamentos.
Clara se
aproximou da pequena cozinha dos fundos com a garrafinha em mãos, ainda
distraída com os próprios pensamentos. Abriu a torneira, deixando a água correr
um pouco antes de começar a encher. Enquanto observava o fluxo transparente
preencher o plástico, vozes abafadas chamaram sua atenção.
— Eu não
tô pedindo tua opinião, Augusto — a voz firme de Verônica atravessou a porta
mal fechada do escritório ao lado.
Eu, instintivamente,
congelei meus movimentos e abaixo um pouco o corpo, como se isso me tornasse
invisível.
— Eles
estão aqui há anos, Verônica! — disse Augusto, levantando ligeiramente a voz,
mas ainda tentando manter o controle. — Não dá pra simplesmente descartar
assim, como se fossem peças quebradas!
— Não são
peças quebradas, Augusto — retrucou Verônica, apoiando as mãos na mesa e
encarando o homem com firmeza —, mas se tornam um peso morto quando param de se
mover. E o pior: contaminam os outros com esse marasmo. Eu tô vendo isso
acontecer, todos os dias.
— Mas
você não pode julgar anos de trabalho por algumas semanas de adaptação. Essa
mudança tá sendo rápida, radical até. Dá um tempo pro pessoal se ajustar.
Verônica
cruzou os braços, impaciente.
— Você
viu os relatórios? Viu quem mais falta, quem mais enrola, quem vive de atestado
falso ou justificativas esfarrapadas? Porque eu vi. E sabe o que mais vi? A
mesma meia dúzia sabotando qualquer tentativa de mudança. Se fosse um ou dois
dias de adaptação, eu entenderia. Mas isso é resistência passiva, Augusto. É
descomprometimento crônico.
Augusto
suspirou, frustrado, passando a mão pelos cabelos.
Mal
terminei de encher minha garrafinha, ainda com os dedos úmidos no plástico
gelado, escuto a porta do escritório se abrir com força — não era preciso ver
para saber que Verônica havia saído dali como um furacão. Os saltos dela ecoam
pelo corredor como marteladas no chão. Logo em seguida, Augusto aparece,
bufando feito um touro. Seus passos pesados param no meio do corredor, bem
diante do bebedouro onde estou, mas ele não me vê. Seus olhos estão turvos de
raiva, fixos em algum ponto do teto.
— Essa
mulher vai destruir tudo que eu construí aqui! — ele rosna para si mesmo,
apertando os punhos com tanta força que os nós dos dedos ficam brancos. — Quem
ela pensa que é pra mexer assim no que eu sempre administrei?
Ele
começa a andar em círculos curtos, como se estivesse brigando com o próprio
orgulho.
— Agora
quer cortar todo mundo como se fosse heroína… justo agora que eu consegui
deixar tudo do meu jeito. — Cospe as palavras com amargura. — Tirar aqueles
funcionários é perder as únicas peças que ainda me obedecem… e o pior: sem nem
me consultar de verdade.
Ele ri,
mas sem humor algum.
— E no
final, quem é que vai ter que cobrir as pontas? Eu. Sempre eu. Ridículo isso…
Fico
paralisada por um instante. Não tanto pelo que ouvi, mas por finalmente
enxergar com clareza quem é Augusto quando ninguém está olhando. Ego ferido,
sede de controle… e medo de perder o trono que sempre ocupou por conveniência,
e não por competência.
Saio dali
sem fazer barulho, o coração ainda acelerado. A gestão de Verônica pode ser
dura, mas agora entendo — ela está tentando limpar o que muitos fingiram que
não estava sujo.
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