quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 14

Pagina 14 – Capitulo 02

Por Clara...

A manhã passou rápido, junto com as horas, e a fome não demorou a dar as caras. Mas algo surpreendeu a todos nós: Verônica havia pedido comida para todos os funcionários. Aquilo nos pegou desprevenidos. Acho que o papo de mudança realmente tem fundamento — porque, em todos os anos que estou aqui, nunca vi esse povo dar nem água pra um pinto, quanto mais marmita pra gente.

 

Com os olhos semi cerrados, hesitei por um instante antes de escolher uma das marmitas. Meu instinto ainda carregava certa desconfiança. Ao fundo, a voz dela ecoou com aquele tom provocativo que parecia vir naturalmente.

 

— Pode pegar, Clara — disse Verônica, com um leve sorriso no canto da boca. — Prometo que não pus veneno na sua comida.

Revirei os olhos — sem que ela percebesse, é claro. A gente até que tinha começado bem... mas velho hábito não muda fácil. Peguei minha marmita, respirei fundo e fui me sentar ao lado do Luís, num pedaço de papelão jogado no cantinho do depósito. Era ali mesmo, no improviso, que a gente fazia caber a dignidade entre uma garfada e outra.

Todos já estavam terminando de comer, e eu, como sempre, não consegui segurar a língua presa por muito tempo:

— Bem que a gente podia ter ganhado um refrizinho, né?

Verônica, sem nem levantar a cabeça, soltou no automático:

— Não abusa.

Soltei uma risadinha abafada enquanto dava o último gole na água gelada do copo de plástico. Ok, ponto pra ela. Mas no fundo… vai dizer que uma coquinha não cairia bem.

Voltando às atividades, a sensação era quase desanimadora: não havíamos terminado nem um terço daquele mercado. E, como já era de se esperar — porque aqui parece que o universo adora testar a nossa paciência — o que é mais comum naquele mercado acontece.

 

Cliente reclamando de erros de operador de caixa.

 

Mas bastou um erro para o ambiente, já tenso, azedar de vez. Uma das caixas, visivelmente cansada com a rotina do dia, passou dois pacotes de arroz em vez de um. A cliente, atenta, percebeu no visor e imediatamente levantou a voz.

— Moça, eu só peguei um! — exclamou, segurando o pacote como prova.

A funcionária tentou explicar, mas a cliente já gesticulava indignada, atraindo a atenção de outras pessoas na fila. Em segundos, a discussão cresceu, com a cliente exigindo a presença da gerência e ameaçando registrar uma reclamação formal. 

Ouvindo a discussão e reconhecendo a senhora que estava causando a confusão toda — dona Judite, figura carimbada das manhãs de sábado e conhecida por sua paciência curta —, entrei no meio tentando resolver tudo antes que a situação chamasse ainda mais atenção do que já estava chamando.

— O que tá acontecendo aqui, dona Judite? — perguntei com a voz tranquila, mas firme, me colocando entre ela e a caixa, que já parecia prestes a chorar.

— Essa moça passou dois pacotes de arroz a mais! — ela reclamava, sacudindo o cupom fiscal como se fosse um troféu de guerra.

Tomei o papel com delicadeza, conferi os itens e confirmei o erro. Com o máximo de calma e o sorriso profissional colado no rosto, expliquei que iríamos corrigir ali mesmo, e que ela não teria nenhum prejuízo. Fiz o estorno no sistema, entreguei o dinheiro e ainda me desculpei pelo ocorrido.

— Pronto, tudo certo agora. E obrigada por avisar, dona Judite. Assim a gente melhora, né?

Ela resmungou algo como "espero mesmo", pegou suas sacolas e saiu ainda emburrada. Mas pelo menos, sem gritar. E, por hoje, isso já era uma vitória.

— Foi mal, Clara… eu juro que revisei antes de passar. Acho que tô mais cansada do que pensei — Juliana disse, ainda meio abalada, mexendo nervosamente na máquina do caixa.

Clara respirou fundo, mas manteve o tom leve.

— Relaxa, Ju. Essas coisas acontecem. Só tenta ficar mais atenta, principalmente com gente como a dona Judite… ela fareja erro de longe.

Juliana soltou uma risadinha abafada, já um pouco mais tranquila.

— Ela é pior que auditor do governo, né?

Exatamente às 17:45, quando todos já estavam certos de que ainda teriam pelo menos mais uma hora de trabalho pela frente, Verônica apareceu no corredor principal, batendo as mãos uma contra a outra como quem encerra uma tarefa.

 

Depois de resolvermos a situação, voltamos às nossas atividades, cada um retomando sua função com certa pressa, como se tentássemos recuperar o tempo perdido. E, quando achei que nada mais poderia me surpreender vindo da Verônica, ela me prova o contrário. Sem aviso, sem rodeios, simplesmente aparece com uma atitude que desmonta toda a imagem rígida que construímos dela nos últimos dias — me fazendo, pela primeira vez, acreditar que talvez eu tenha julgado cedo demais.

 

— Atenção, pessoal! — sua voz ecoou com firmeza. — Fecharemos agora. Podem encerrar tudo, fechar os caixas e começar a guardar as coisas.

O silêncio tomou conta por alguns segundos, até alguém, lá do fundo, soltar:

— É pegadinha?

Verônica arqueou a sobrancelha com aquele meio sorriso enigmático que ninguém sabia se era sarcasmo ou seriedade.

— Tô com cara de palhaça? Fecha tudo, vamos descansar. Amanhã a gente termina o resto.

O choque se transformou rapidamente em correria e risos contidos — ninguém estava entendendo nada, mas ninguém ousava contestar.

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