segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 53

 Continuação por Clara...

Como hoje a Verônica mesma mandou mensagem retribuindo o favor de ontem com uma folga, decidi que vou aproveitar o dia para colocar a casa em ordem e levar o Bentinho no veterinário. Preciso aproveitar esse raro momento de calma — se fosse pelo Augusto, ele com certeza arranjaria uma desculpa qualquer para me puxar pro turno da tarde. Só de pirraça. Mesmo sem necessidade. Só pelo prazer de mandar.

Mas hoje não. Hoje é meu. E do Bento.

Ele está ali agora, se espreguiçando todo, com a língua pra fora e aquele ar de quem acha que é dono do mundo. Eu não discuto. Ele manda mesmo.

A cada três meses, como orientação da Dra. Laís, o levo para os exames de controle. Desde aquela crise... eu nunca mais fui a mesma.

A obstrução urinária foi um susto que não desejo pra ninguém. Um ano atrás, eu nem percebi. Estava tão atolada no trabalho, tão imersa em sobreviver e dar conta de tudo, que simplesmente... não vi.
Não vi que ele bebia menos água.
Não vi que evitava a caixinha de areia.
Não vi o sangue.
Não vi o olhar apagado dele.

Fui perceber quando já era tarde demais.

Me lembro perfeitamente daquela madrugada. Bento gemia de dor e eu, em pânico, ligava pra todos os números de emergência possíveis. Quando a Dra. Laís atendeu, parecia que uma parte do desespero tinha se dissolvido só de ouvir a voz calma dela do outro lado da linha.

Ela me recebeu de moletom e cabelo preso, olhos inchados de sono, mas coração enorme.
Não me julgou. Não reclamou.
Simplesmente cuidou.

Fiquei sentada naquela cadeira desconfortável da recepção, com a alma em pedaços, achando que ia perder meu melhor amigo.
Meu companheiro de todas as horas.
O meu pequeno herói matador de baratas que me acompanha até no banheiro em sinônimo de segurança — Começo a rir com a lembrança da cena, pois mesmo ele se esfarelando de sono, se eu levanto na madrugada nem que seja para tomar uma água, lá está ele atrás de mim como uma sombra.

O mesmo gato que se aninha em mim nos dias tristes e que nunca pediu nada além de carinho e atenção — e que eu falhei em dar.

Me culpei tanto...
Me senti um monstro.
Mas Bento sobreviveu. Com força, teimosia e um miado rouco de quem ainda tinha muito o que viver.

Desde então, não descuido mais.

Hoje ele vai ao veterinário, vai receber carinho da Dra. Laís e, quem sabe, até ganhar um petisco — ou dois, se fizer aquele olhar pidão.
E eu... vou respirar. Vou cuidar dele. E cuidar de mim também.

Porque cuidar do Bento, de alguma forma, me lembra que eu também mereço ser cuidada. Mesmo que eu demore a aceitar isso.

Organizei a casa por cima, só o suficiente pra não sentir culpa na volta. Coloquei água fresca na planta da cozinha, troquei os panos, abri as janelas. O Bentinho me seguiu em silêncio por alguns cômodos, como quem supervisiona, mas sempre de um jeito charmoso e desatento, pulando nos móveis como se estivesse me ajudando.

Peguei a caixa de transporte no armário alto, e só o barulho dela sendo colocada no chão já fez ele se encolher todo.
— Ei, mocinho, nada de drama hoje — falei com a voz mansa, enquanto colocava uma mantinha limpa no fundo.

Com um pouco de conversa e dois sachês de chantagem, ele entrou sem brigar.

Chamei o nosso transporte pelo aplicativo e seguimos viagem caminho até a clínica. O rádio do carro tocava uma música leve, e o tempo nublado deixava a cidade com uma cara meio nostálgica, meio bonita. Em cada farol, eu olhava para o lado e falava alguma coisa com ele.

— Dessa vez é só exame, viu? Sem cateter, sem hospitalização. Palavra de honra. —  Dizia olhando para ele na caixinha de transporte.

Chegando na clínica, a recepcionista sorriu assim que me viu.
— Oi, Clara! Trouxe o reizinho hoje?

— Ele mesmo — respondi, sorrindo ao levantar a caixa de transporte. — Veio só dar o ar da graça.

Enquanto esperava, reparei como a recepção da Dra. Laís sempre tinha cheiro de lavanda e café. Um espaço pequeno, mas aconchegante. Um daqueles lugares onde até a espera parece gentil.

Quando a porta da sala de atendimento se abriu, o rosto da Dra. Laís surgiu com aquele mesmo sorriso afetuoso de sempre.

— E aí, Bento! Já fez drama ou deixou pra cá?

— Hoje foi bonzinho... mais ou menos — disse, colocando a caixa na mesa de exame. — Mas ele sabe que aqui tem petisco escondido, então não reclama muito.

Ela o examinou com cuidado, como se estivesse manuseando porcelana rara. Conversava com ele em voz baixa, como se fossem velhos amigos. E, em algum ponto, ela parou de falar com o gato e se virou pra mim:

— Sabe, Clara... ele tá bem. Muito bem, aliás. Os exames vieram ótimos. Você tem feito tudo certo.

Sorri. Mas não conseguir disfarçar minha insegurança.

— Obrigada... — respondi num sussurro. — Eu sempre acho que posso estar esquecendo alguma coisa, sabe?

Ela assentiu.
— Nós que temos muito amor por um serzinho com o olhar tão maroto assim...— Disse de uma maneira que me fez rir. —  sempre achamos isso.

E foi ali que percebi: há pessoas que cuidam de bichos, e há outras que cuidam da gente também, mesmo sem dizer diretamente. A Dra. Laís era uma dessas.

Pagamos, pegamos os exames impressos e, antes de sair, ela ainda me chamou:

— Ah, Clara... diga pro Bentinho que ele é um dos meus pacientes preferidos.

— Pode deixar. Mas acredito que ele já sabe. — Digo levantando a gaiola e o encarando através da grade. 

No caminho de volta, Bentinho dormia no banco do passageiro, ronronando baixinho.
E eu... me sentia em paz.

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O acaso a meu favor - Página 52

 Por Clara...

Acordei com a luz da manhã filtrando pelas frestas da cortina. Não foi o despertador, nem o gato miando pela ração — foi uma notificação no celular. Estiquei o braço com preguiça e peguei o aparelho ainda com os olhos meio cerrados.

Mensagem da Verônica.

Endireitei no mesmo instante, como se meu corpo já soubesse que não dá pra ler nada dela de qualquer jeito. Desbloqueei a tela e li devagar:

— “Clara, bom dia!”
Sorri. Sempre me espanta como até o bom dia dela parece cuidadosamente pesado, como se tivesse passado por três revisões internas antes de sair.

— “Hoje não há necessidade de vir, está bem?”
Franzi a testa.
Ué?

— “Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.”

E ali, eu entendi. Ela lembrava. Ontem eu estava de folga. E mesmo tendo me chamado, agora queria compensar. Ela notou. Ela pensa em mim mais do que demonstra.

Li de novo.

— “Tenha um bom dia, e descanse!”

Soou como um comando... mas um comando com afeto. À moda dela, claro.
Ela se preocupa. Só não sabe muito bem como demonstrar.

Meu coração apertou. Fiquei um tempo olhando pra tela, com os dedos pairando sobre o teclado, sem saber exatamente o que responder. Cada palavra minha parece sempre correr o risco de passar do limite invisível que a gente finge que não existe.

Mas mesmo assim, escrevi:

— Bom dia, Verônica! Obrigada por avisar. Fico feliz em poder descansar um pouco mais hoje. E... obrigada por lembrar de ontem. Eu gosto de ajudar, sempre que precisar.

Pensei em colocar um “coração” no fim. Apaguei.

Substituí por:

— Tenha um ótimo dia também. E se precisar, tô por aqui. Mesmo de pijama.

Sorri. Era bobo, mas era meu jeito. Um meio-termo entre o profissional e o que... talvez, nem eu consiga nomear ainda.

Enviei. Encostei o celular no peito e fiquei ali, deitada, ouvindo o ronronar de Bento.
Mas minha cabeça, bom... já estava no mercado. Ou melhor — nela.

Olho pra bola de pelos enrolada nas minhas pernas. Ele dorme feito rei, dono absoluto do pedaço — e talvez de mim também. Dou um sorriso presunçoso.
Ando... diferente. Leve. Não é que a vida esteja fácil — nunca foi —, mas ultimamente algo em mim está mais calmo. Como se a tempestade que sempre morou no meu peito tivesse aprendido a chover menos.

Algumas coisas ainda testam meu limite, me cutucam por dentro, me desafiam. Ontem mesmo, aquele silêncio entre eu e Verônica no carro... aquilo disse mais do que qualquer conversa inteira. Mas, mesmo com essas pontas soltas, tem algo em mim que está mais desperto.

Não sei explicar ao certo. É como se, por muito tempo, eu estivesse apenas sobrevivendo — seguindo, cumprindo, existindo.
Mas agora... agora eu sinto.
Confuso, sim.
Mas real.

Essas pequenas trocas de olhar, a atenção dela em detalhes que ninguém mais nota, o jeito que fala tentando parecer distante, mas sempre escolhendo palavras com cuidado... tudo isso me atinge. Devagar, feito onda que não derruba, mas carrega.

Sinto que estou sendo forçada a viver, mas pela primeira vez, viver não dói.

Essas sensações, ainda que bagunçadas, têm um gosto estranho de liberdade.
Talvez seja isso: estou me permitindo sentir. E me sentir viva, mesmo sem saber o que vai acontecer depois.

Acaricio o gato com a ponta dos dedos, ele resmunga preguiçoso e muda de posição, me aquecendo ainda mais.

Fecho os olhos.
Não quero respostas agora. Só quero ficar aqui, com essa leveza nova que me visita sem pedir licença.

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O acaso a meu favor - Página 51

 Continuação por Verônica...

Acordei com a cabeça mais leve do que fui dormir. Talvez não exatamente leve... mas funcional. Consegui separar o que era emocional do que era prático, e isso já me deu uma vantagem.
Tomei café sem pressa, respirei fundo e fui direto para o mercado.

Hoje, Igor chega com Lia. Noite movimentada pela frente — e nem falo do que ele traz nas malas, mas sim do que pode vir no olhar. Sinto que ele está diferente desde a última visita. Mais sério. Mais distante. Mas, por enquanto, foco no que posso controlar.

Cheguei cedo, antes de todos. O silêncio do mercado vazio é algo que me conforta. Passei direto pro escritório, abri o computador, organizei planilhas, respondi e-mails... tudo no automático. Até que um deles me chamou a atenção.

Assunto: “Oportunidade comercial — galpão Caldas”.

Cliquei.

As fotos carregaram devagar, como se me provocassem. E logo de cara, meu coração bateu diferente. Um galpão grande, bem localizado, em uma das avenidas principais na entrada de Caldas. A estrutura... o espaço... aquele tipo de lugar que você olha e já vê vida dentro. Movimento. Gente comprando, mercadoria rodando, o cheiro de pão saindo de uma padaria no fundo, a possibilidade de um segundo açougue... Um sonho se materializando em pixels.

Fechei os olhos por um segundo. Se por foto eu já consegui imaginar mil e uma possibilidades... imagina vendo aquilo ao vivo?

Mas aí, a realidade me puxou de volta com força.

Dinheiro. Ou melhor, a ausência dele.

Já tirei tudo o que podia de uma das contas para a construção do açougue. Investi pesado — estrutura, equipamentos, mercadoria. O mercado está no vermelho, e eu sei disso melhor do que ninguém. Apostei tudo o que tínhamos no caixa de segurança. Uma jogada ousada, arriscada... mas necessária. Porque manter o mercado de pé, não é mais sobre lucro. É sobre sobrevivência. Sobre salvar um legado, sobre cuidar de quem trabalha comigo, de quem depende disso pra viver.

Se der certo — e eu acredito que vai dar — o retorno vem. A reforma vai chamar mais clientes, a nova disposição das prateleiras vai ampliar as vendas, o novo açougue vai bater de frente com concorrente grande. E com isso, espero pagar não só o que devo, mas também apagar o rastro de dívidas e processos que ainda me cercam como sombras.

Fechei o e-mail. Anotei o número do corretor no canto de uma folha. Não sei se posso... mas também não sei se posso ignorar.

No fundo, eu sei: meu problema nunca foi sonhar alto. Foi fazer isso com os pés no chão rachado.

Mas uma coisa é certa: se eu conseguir reerguer esse mercado, ninguém nunca mais para a empresa dos Moreli. 

Peguei o celular e olhei a hora. Eram exatamente 5h57. O mercado ainda dormia, mas minha mente já estava em plena atividade. Estava há tempos acordada, reorganizando mentalmente as tarefas do dia, mas foi nesse momento que senti aquela vontade quase involuntária de vê-la... ou pelo menos saber se ela estava bem.

Deslizei a tela e abri o aplicativo de mensagens. Clara. O nome dela apareceu no topo da lista — havia estado online pela última vez às 23h14. Me pergunto o que ela fazia acordada tão tarde... mas logo desvio o pensamento, tentando não cair no exagero.

A foto de perfil dela me arranca um sorriso involuntário. Está com um gato branco no colo, com manchinhas pretas nas orelhas e no topo da cabeça, e olhos de um azul tão forte que por um momento achei que fosse filtro, montagem, ou sei lá o quê. Mas não. É real. Ela, o gato, os dois naquela simplicidade bonita que dá vontade de entrar na foto e ficar ali um pouco.

Fiquei um tempo olhando pra tela antes de abrir a caixa de mensagem. Pensei e repensei cada palavra antes de digitar. Não queria parecer estranha. Ou mais envolvida do que deveria. Respirei fundo. Escrevi:

— Clara, bom dia!

Parei. Olhei. Simples. Direto. Educado. Mas talvez seco demais?

Continuei:

— Hoje não há necessidade de vir, está bem?
Preciso ser justa. Ontem tirei ela da folga, sem cerimônia. Merece descansar.

— Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.
Se fosse outro funcionário, admito: eu não teria me preocupado em justificar tanto.
Sorri sozinha. Ri de mim mesma. Estou sendo cuidadosa demais... só com ela.

Finalizei:

— Tenha um bom dia, e descanse!

Li de novo. Soou como uma ordem? Talvez. Mas é isso mesmo que quero. Que ela descanse. Que não se sinta pressionada. Que saiba que eu vi o esforço de ontem — e que, apesar de não saber dizer isso com facilidade, eu reconheço.

Pensei em colocar um emoji. Desisti. Ainda sou velha demais pra esses detalhes.
Cliquei em "enviar".

Guardei o celular e me inclinei pra frente, voltando à tela do computador.
Mas a cabeça... bem, a cabeça já não estava mais ali.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...