segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 50

 Por Verônica....

Era a última semana da Juliana no mercado. Já estava de aviso prévio, e eu, sinceramente, contava os dias. Não por rancor, mas por esgotamento. Meu limite com ela já tinha sido ultrapassado há tempo. Hoje, tudo o que eu queria era cumprir a formalidade, encerrar o capítulo, virar a página.

Mas quando ela entrou no escritório, com aquele papel na mão, rosto pálido e passos hesitantes, eu soube que não era um simples papel de atestado ou algo do tipo. O mundo pareceu parar por um instante. Peguei o papel. Era um exame de teste de gravidez. Positivo.

Não consegui dizer nada de imediato. Só respirei fundo. De novo, eu teria que engolir uma situação que não pedi. Não podia demitir. Legalmente, eticamente… estava de mãos atadas. 

Saí do escritório com um nó na garganta. Pus a mão no cabelo, joguei pra trás, tentando manter a postura. Sabia que Clara estava observando. Sempre está.

Foi aí que decidi: "Vou levar ela pra casa hoje." Nem pensei muito. Só sabia que, naquele turbilhão, Clara era a única presença que não me pesava. Talvez até o contrário. Chamei, pedi pra esperar. E ela esperou, como sempre faz, sem perguntas.

O silêncio no carro era quase reconfortante — e ao mesmo tempo, doloroso. Me senti exposta de um jeito estranho. Cansada, vulnerável. Mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me mantinha firme. Clara.

Você percebe tudo, não percebe, Clara? — perguntei, sem pensar. Era mais um reconhecimento do que uma pergunta.

Nem tudo… mas o que me importa, eu percebo. — ela respondeu. Aquelas palavras... simples, mas certeiras. Como tudo nela.

Tive que respirar fundo pra manter a voz firme.

Hoje foi um dia difícil. Mais do que costumo admitir… mas quando você tá por perto, parece que as coisas pesam um pouco menos.

Foi o máximo que consegui me permitir dizer. E já era muito. Muito mais do que costumo mostrar a alguém. Ela soltou uma risada nasal em sinal de nervosismo.

Juliana entregou um papel hoje. Daqueles que viram a página… ou fecham livro.

Não contei o conteúdo. Ainda não. Ainda estava tentando processar.

Você vai ficar bem? — ela perguntou. Com aquela voz baixa, quase doce, que me desmonta.

Não sei, — admiti, olhando pra estrada — mas agora… agora só quero chegar em casa. Te deixar segura. Depois, eu penso no resto.

Não sei o porquê de ter me oferecido para levá-la em casa.
Talvez fosse culpa. Culpa por ter criado nela uma expectativa que agora não posso cumprir. Fiz uma promessa sem nunca ter dito em voz alta — a de que, com a saída da Juliana, as coisas melhorariam para ela.
Mas agora… tudo mudou. E eu não tenho como sustentar essa promessa.

E foi isso. O resto do caminho foi feito em silêncio. Um silêncio carregado de tudo o que não dissemos — e que talvez, um dia, a gente diga.

Quando parei o carro, ela me olhou antes de sair. Agradeceu. Me desejou boa noite. E naquele instante, o mundo inteiro se resumiu àquela troca curta, contida, mas cheia de coisa não dita.

Ela entrou. Eu fiquei ali. Mãos no volante, o corpo imóvel, o peito cheio demais.

Hoje, eu não consegui demitir ninguém. Mas perdi muito mais do que controle.
E talvez, tenha ganhado algo que ainda não sei nomear.

Ainda estava ali. Parada em frente ao prédio da Clara, com o motor desligado e os faróis apagados. Ela já tinha subido, já devia estar tirando os sapatos, talvez preparando um café, ou quem sabe sentada em silêncio, do jeito que eu vejo que ela gosta. E eu ali... travada.

O mundo parecia quieto demais. E eu também.

Apertei o volante com força sem perceber. Os dedos, tensos. O maxilar, travado. O peito... pesado.

Essa mania de me fazer forte o tempo todo... Às vezes parece que eu estou tentando segurar as paredes do mundo com as próprias costas. E mesmo quando alguém me oferece uma fresta de acolhimento, eu me saboto. Me fecho. Me tranco.

Soltei o ar devagar. Bati os dedos duas vezes no volante, como quem tenta despertar de um transe.

Vamos lá... — falei baixinho, só pra mim, quase como um empurrão interno.

Girei a chave. O carro voltou a ronronar baixinho, como se perguntasse: "Tem certeza que quer voltar pra casa agora?"

Não, não tinha. Mas também não sabia o que fazer com tudo que sentia.

Engatei a marcha. Voltar era o único movimento possível. Porque parar, aqui, olhando pro prédio dela... me deixava exposta demais até pra mim mesma.

E enquanto dirigia, só uma coisa me rondava a cabeça: até quando vou conseguir fingir que Clara não me atravessa do jeito que atravessa?

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 51

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 49

 Por Clara....

Estranhei quando vi o Augusto saindo com a mochila nas costas e o capacete na mão. Ele não saiu como de costume — parecia contrariado, meio pisando duro, como se o chão não fosse digno dos pés dele. Aquilo me incomodou, mas como já estava perto do horário de fechar, deixei pra lá. Virei pra Diana e falei:

Di, vou ajudar os meninos no fechamento... qualquer coisa, me chama, tá?

Ela girou a cadeira e me olhou com aquele jeito atento dela, assentindo com a cabeça. Então fui. Tinha mercadoria espalhada por todo canto, prateleira pela metade, e aquela sensação de “vamos correr antes que a porta se feche”. Augusto geralmente cuida dessa parte, mas como foi embora mais cedo, decidi quebrar o galho.

Eu não tenho a força de um homem, mas tenho minha lógica. Peguei um carrinho de compras e pedi pros meninos colocarem as caixas ali, assim eu ia rodando pelo mercado, organizando tudo com método. Já deixei meu caixa contado — é o jeito de não travar ninguém na hora de fechar.

Nesse horário é sempre uma correria que só. A gente limpa, repõe, organiza, higieniza. Um olho na tarefa, outro no relógio, e o pensamento no banho que espera em casa.

Foi aí que tudo pareceu congelar por uns segundos.

Juliana entrou pela porta com uma expressão pálida, quase sem cor. Na mão, um papel amassado. O ambiente, que estava cheio de conversa solta, risadas, piadas entre uma caixa e outra... ficou mudo. O barulho dos passos dela ecoou pelo corredor até sumir na porta do escritório da Verônica.

Não sei o que tinha naquele papel. Mas sabia, só de olhar, que alguma coisa ia mudar depois daquilo.

Os minutos, depois que Juliana entrou naquele escritório, começaram a escorrer lentos... como se o tempo estivesse segurando a respiração junto comigo. Eu fingia que organizava as prateleiras, mas minha cabeça estava em outro lugar — ou melhor, em uma só pessoa: Verônica.

Tentava manter o foco, contar mentalmente as mercadorias, fazer o que precisava ser feito, mas a verdade é que a ansiedade começou a se espalhar pelo meu peito como se fosse ocupar todo o espaço. Meu coração batia forte demais, como se quisesse sair dali antes de mim.

Foi quando vi Juliana saindo da sala. Ela desceu o corredor de cabeça baixa, segurando aquele mesmo papel. Foi direto até uma prateleira, pegou um produto qualquer — nem lembro qual — e foi ao caixa, como se nada tivesse acontecido. Mas eu vi. Vi nos olhos dela. Tinha alguma coisa errada ali. Muito errada.

Foi só aí que Verônica apareceu.

Veio caminhando firme, como quem quer mostrar que está no controle, mas eu conheço seus gestos. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os pra trás, do jeito que sempre faz quando está nervosa. O rosto dela tentava manter a compostura, mas os olhos... ah, os olhos dela estavam dizendo outra coisa. Coisa que ninguém ali pareceu perceber. Mas eu percebi.

Ela anunciou que podíamos encerrar as atividades, com a voz firme, mas um leve atraso nas palavras. Como se cada sílaba pesasse mais do que devia.

E eu fiquei ali, parada por um segundo, segurando uma caixa de leite, com a sensação de que alguma coisa, bem grande, estava prestes a desmoronar.

...............................................................................................

Eu já estava desligando meu caixa quando vi Verônica se aproximando. O mercado estava quase vazio, os meninos se dispersando, o som da musica diminuindo. Ela andava com aquele passo determinado, mas havia um certo peso nos ombros. Quando chegou perto, me chamou em voz baixa, mas firme:

Clara, espera um pouco antes de ir embora, por favor.

Assenti de imediato, sem nem perguntar o porquê. Só o jeito como ela disse já foi o suficiente pra minha garganta apertar.

Ela se afastou, foi até o fundo do mercado, trocou duas palavras com Diana e depois sumiu por um tempo no escritório. Fiquei ali perto do caixa, tentando fingir normalidade, organizando uns papéis que nem precisavam de organização. Mas por dentro... eu sentia o nervosismo crescendo como uma onda prestes a quebrar.

Quando ela voltou, os olhos estavam mais calmos, mas o rosto ainda trazia traços de tensão. Se aproximou de novo, agora com um ar mais suave, e disse, meio hesitante:

Vou te levar em casa hoje, tudo bem?

Demorei um segundo pra responder. Aquilo pegou no meio do peito, como se fosse uma pergunta simples, mas cheia de significado escondido. Engoli em seco, tentando controlar o sorriso que ameaçava escapar. Ela estava ali, me oferecendo algo tão pequeno... mas ao mesmo tempo, tão pessoal.

Tá... tudo bem sim. — respondi, baixinho.

Ela assentiu com a cabeça e fez um gesto quase imperceptível com os olhos, indicando que eu podia esperar perto da porta. E eu fui, sentindo as pernas meio bambas, como se o mundo inteiro tivesse mudado de tom só com aquela frase.

Enquanto eu aguardava, só conseguia pensar: o que foi que Juliana disse naquele escritório? E por que, mesmo em meio a tudo isso, Verônica olhou pra mim daquele jeito?

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 50

O acaso a meu favor - Página 48

 Por Verônica...

Quando ela me perguntou sobre o bilhete, por um instante senti o mundo desabar — como uma adolescente pega no flagra, o coração disparado, a mente um turbilhão de medo e vergonha. Mas me agarrei a um fio de força e assumi, do jeito que consegui. Por fora, parecia calma, quase indiferente, mas por dentro, meu peito batia tão forte que parecia querer explodir, igual à bateria de uma escola de samba na Sapucaí no auge do desfile.

Ao dizer que fui eu, senti como se tivesse jogado uma luz sobre um segredo pesado demais para carregar. Não sei exatamente o que deixei claro, talvez nem eu saiba direito... Só sei que ainda não tenho coragem para encarar tudo isso de frente.

Dispensei o Augusto mais cedo. Ele tentou me segurar, tentou me convencer a ficar, mas eu firmei: “Está tudo sob controle”. Ele relutou, resistiu, mas no fim teve que ir pra casa. Fiquei sozinha com os meninos. Os repositores mais novos... olha, pelo que tô vendo, eles estão pegando o jeito rápido, aprendendo as funções, cada dia mais seguros.

Observei o Luís e o Paulo hoje. Engraçado como cada um está lidando com a despedida de um jeito tão diferente. Um deles, nos últimos dias do aviso, está dando o melhor de si — como se quisesse sair deixando uma boa impressão, talvez até tentando consertar o que não fez antes. Já o outro... parece uma criança birrenta, emburrada por ter sido castigada. Faz tudo de qualquer jeito, largado, jogando as tarefas com desdém. Vive repetindo: “Se eu não fui o melhor, então deixo o melhor fazer.” — Só me restou rir por dentro. A cena que me vem é a de um senhor de idade cruzando os braços, fazendo birra igual menino mimado. Ridículo, mas quase cômico.

O Luís, acabei tendo que demitir. Falta de compromisso. É jovem, não o julgo, tem muito chão pela frente — mas não posso permitir que a responsabilidade de um pese nos ombros de outro. O dia que ele chegou bêbado... ali foi o fim da linha pra mim. Tentei relevar, mas tem limite. Aqui não é balada, é trabalho.

A Juliana... ah, a Juliana já virou um caso perdido. Tentei conversar, orientar, ajustar. Nada. Ela trabalha como se tudo tivesse que girar do jeito dela. Se não for assim, ela trava, boicota, dificulta. E eu estou cansada. Cansada de lidar com gente que acha que firmeza é opressão. Isso aqui não é creche, nem casa de caridade. É uma empresa. Tem custo, tem margem, tem meta, tem venda. E principalmente — tem despesa. Se não vende, não lucra. E se não tem lucro, eu não tenho como pagar o salário de ninguém.

Às vezes me pego pensando se eu tô sendo dura demais. Se não tô exigindo demais de gente que, às vezes, mal sabe o que quer da vida. Mas aí lembro que ninguém me deu colher de chá quando eu comecei. Tudo o que conquistei foi no braço, no suor, segurando a barra sozinha, muitas vezes com o coração em pedaços e o sorriso forçado no rosto.

Liderar não é só mandar. É carregar o fardo do que ninguém vê. É perder o sono por conta de conta que não fecha, de funcionário que falta, de produto que não chegou. É fingir que está tudo bem mesmo quando, por dentro, você só queria deitar e sumir um pouco. Mas não posso. Não posso porque tem gente que depende desse lugar, dessa empresa, dessa estrutura que meu pai levantou com tanto esforço. Tem família que vive com o que a gente gera aqui.

Às vezes, queria que entendessem isso. Que cada centavo conta. Que cada atitude afeta o todo. Que o mercado pode ser pequeno, mas o peso que ele carrega é imenso. Não é só comércio. É vida real. É salário, é aluguel, é conta de luz. É dignidade.

E eu... eu só queria, de vez em quando, poder respirar sem sentir que estou carregando o mundo nas costas. Mas não reclamo. Porque, apesar de tudo, sei do valor da nossa família. E sei que não cheguei até aqui pra recuar agora.

Próxima página - O acaso a meu favor .... Página 49

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...