quarta-feira, 16 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 40

 Continuação por Clara...

Assim que começou a dar o horário da Juliana entrar, comecei a agilizar meu caixa. Já sei que ela não é muito de chegar antes, então preferi ir organizando tudo para não deixar acúmulo. O mercado estava mais leve naquele momento — talvez por causa do silêncio temporário do Augusto, que tinha saído para o intervalo. Sempre tive esse tipo de percepção… ou análise, como gosto de chamar. E ali, sozinha com meus pensamentos, ela voltou com força.

Percebi, não de hoje, que por mais que a Juliana já tenha pisado na bola várias vezes por aqui, nunca vi o Augusto repreendê-la do jeito que costuma fazer comigo. Nunca uma voz mais alta, uma cobrança incisiva, muito menos uma advertência por escrito — mesmo depois de faltar por dias seguidos. E não é ciúme, nem vitimismo. É observação. Porque quando é comigo, basta um erro pequeno para ele jogar o peso do mundo sobre minhas costas, como se eu tivesse uma dívida constante a pagar.

Não entendo. Ou talvez entenda sim. Mas não gosto nem de pensar. Há algo ali, nas entrelinhas do tratamento, que incomoda — um tipo de diferença que ninguém diz em voz alta, mas que machuca por dentro. E nesse momento, entre um caixa fechado e outro abrindo, o que mais me bate é a sensação de injustiça silenciosa. Daquelas que não aparecem nos relatórios nem nos murais da empresa. Mas que se acumulam, dia após dia, dentro da gente. E com esse pensamentos, vejo Verônica saindo de algum lugar dos corredores e só depois, percebo que ela estava me observando.

Verônica apareceu na porta do estoque com a prancheta na mão e aquele olhar de quem enxerga tudo sem dizer de imediato. Encostei no balcão do caixa, fingindo que conferia os valores no visor, mas a verdade é que minha cabeça já não estava mais ali. Quando ela se aproximou, percebi que meus ombros estavam tensos demais. E foi aí que ela falou, baixo, como quem não queria invadir:

— Tá tudo certo com você?

Pensei em dizer que sim. Que era só mais um dia corrido. Mas meu silêncio durou mais do que devia, e Verônica, com aquela sensibilidade escondida por trás da firmeza, só me olhou. Me vi abrindo a guarda sem perceber.

— É que às vezes parece que o peso aqui dentro não é dividido igual, sabe?

Ela franziu o cenho, mas não respondeu de imediato. Esperei uns segundos, e continuei:

— A Juliana some dois, três dias, e nada. Nenhuma cobrança, nenhum olhar atravessado. Já eu… se deixo passar uma vírgula, o Augusto já vem com sermão, tom, e aquela pose de quem tá sempre certo. Eu só não entendo. Ou talvez entenda, mas... enfim.

Verônica apoiou a prancheta no balcão, ficou em silêncio por alguns segundos e disse, com uma calma que me desarmou:

— Eu já percebi também. E não pense que está passando despercebido. Só tenho sido estratégica sobre quando e como agir. Porque, às vezes, corrigir algo na frente de todo mundo só muda a aparência. Eu quero que mude a estrutura.

Aquilo me pegou desprevenida. A firmeza dela em silêncio, a forma como vinha observando tudo sem interferir com pressa. Me senti, pela primeira vez em muito tempo, validada. Como se alguém visse, de verdade, aquilo que vinha me corroendo por dentro.

— Obrigada por me dizer isso — falei, quase num sussurro.

Ela apenas assentiu, com aquele olhar sério que guarda tanta coisa, e antes de voltar ao estoque, ainda completou:

— Você não está sozinha aqui, Clara. E ninguém vai te fazer acreditar no contrário.

Ao ouvir aquilo de Verônica — aquela frase direta, firme e cheia de algo que me abraçou por dentro — não sei se me conforta ou me assusta. 

Porque sim, é um alívio imenso saber que ela enxerga, que ela está atenta às falhas que se escondem por trás das hierarquias e da rotina. É bom sentir que não estou sozinha nessa sensação de injustiça que engulo há tanto tempo. Mas, ao mesmo tempo… há um medo que se pendura em mim. Um medo sutil, mas presente.

Tenho receio de como os outros enxergam nossa proximidade. Já ouvi os cochichos, os olhares de canto, os risos abafados quando ela me chama para conversar na sala dela ou quando nossas trocas de palavras vêm com uma naturalidade que não exige esforço. A maioria não entende. Ou não quer entender. E aí surge a ideia venenosa: de que estou me beneficiando. Que estou "tirando casquinha". Que me aproximei dela por interesse.

Mas o que mais me assusta… é a possibilidade de um dia ela mesma pensar isso. De que, por mais que hoje nossos silêncios se entendam, por mais que haja uma conexão que nenhum papel explica, algum detalhe, alguma interpretação errada a faça olhar para mim de um jeito diferente. Que ela duvide da minha intenção. Do meu sentir.

E isso me apavora mais do que qualquer bronca do Augusto. Porque, se tem algo que estou tentando fazer com cuidado, é não sujar o que sinto com urgência ou expectativa. Tentar seguir, dia após dia, nesse equilíbrio frágil entre admiração, desejo e medo. Porque se ela duvidar de mim… tudo desaba.

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O acaso a meu favor - Página 39

Por Clara...

Hoje, como em tantos outros dias, sempre aparece um que confunde gentileza com 'ela tá me dando mole'. E, sinceramente, isso cansa. Chega a ser estressante ter que suportar o infeliz até que ele finalmente perceba — ou aceite — que não estamos interessadas. E ainda tem outra: será que é tão difícil assim perceber que eu gosto de mulheres? Será que não carrego isso no olhar, no jeito, na fala? Ou será que alguns escolhem não ver, porque só enxergam o que convém ao ego deles?

Hoje, quem me livrou de um cara inconveniente foi a Verônica. E, olha… ver ela chegar com aquele olhar sério, carregado de desagrado com a cena, me trouxe um alívio imenso. Ela não precisou dizer nada — a postura dela foi o bastante para o sujeito se tocar e ir embora. É nesses momentos que a gente percebe quem realmente nos protege. Porque, se fosse o Augusto, ele teria me repreendido. Ia dizer que eu estava dando 'liberdades', como se a culpa pelo incômodo fosse minha. Como se o mínimo de educação que ofereço já fosse um convite. E é exatamente esse tipo de pensamento que esgota. Principalmente vindo de um gerente.

A frase e o olhar da Verônica, no fim de tudo, me deixaram com uma leve, mas marcante, sensação de proteção. E isso, especialmente no meu ambiente de trabalho, onde tantas vezes preciso me manter firme sozinha, fez toda a diferença. Foi como se, naquele instante, eu pudesse respirar mais fundo. Saber que alguém está ali, atenta, pronta para intervir quando for preciso, me lembrou que não preciso carregar tudo sozinha — nem sempre.

Tirando esse episódio, aproveitei cada música que tocava no mercado. Afinal, eram justamente das minhas playlists favoritas. Aqueles sons, que eu mesma escolhi com tanto carinho, preenchiam o ambiente e, de algum jeito, também me preenchiam. Era como se, por alguns instantes, tudo estivesse em sintonia — o movimento do mercado, o ritmo das pessoas e até o meu próprio humor.

Pelo visto, Verônica está mesmo levando a sério aquela conversa sobre mudança de dentro pra fora. Hoje apareceu por aqui um senhor de cabelos grisalhos, com uma trena na mão, medindo cada canto do mercado. Eu, como boa curiosa que sou, ficava só de rabo de olho, acompanhando cada passo dele, tentando adivinhar o que ele pretendia com cada medição. Parecia que até as paredes iam passar por transformação. E, confesso, aquilo me deixou animada — mudanças, quando vêm com propósito, costumam trazer boas surpresas.

Às vezes, me pego observando Verônica em silêncio — na correria, nas decisões rápidas, nos detalhes que ninguém nota, mas que ela nunca deixa passar. É impossível não admirar a mulher que ela é. Forte, prática, mas também sensível às necessidades de quem está por perto. As mudanças que tem feito no mercado não são só para reerguer um negócio, mas para tornar o ambiente mais humano, mais justo. Já é tão dedicada aqui, tão incansável... fico imaginando como seria numa família, como ela se entrega, como cuida. E, nesses pensamentos, sinto um misto estranho de tristeza e curiosidade — tristeza por saber que alguém já pode ter essa sorte, essa mulher inteira nas mãos... e curiosidade por imaginar como seria tê-la ao meu lado, em silêncio, sem precisar dizer nada, só sendo quem ela é.

Não sei quando exatamente comecei a olhar pra Verônica com outros olhos. Talvez tenha sido aos poucos, como quem não percebe que está se aproximando do fogo até sentir o calor na pele. O fato é que, com o tempo, ela foi ocupando um espaço silencioso dentro de mim. E quanto mais tento entender o que é isso que sinto, mais me vejo querendo estar perto — não só por admiração, mas por um desejo que não se assume fácil.

É estranho desejar alguém que talvez nem imagine o quanto sua presença me atravessa. E mais estranho ainda é esconder isso todos os dias, disfarçando em olhares rápidos, piadas bobas, ou até num convite inocente pra almoçar. Às vezes, me pergunto se ela percebe. Se sente. Ou se sou só eu, nesse silêncio todo, tentando guardar algo que insiste em transbordar.

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terça-feira, 8 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 38

Por Verônica...

Depois dessa reflexão toda — que, aliás, não costumo permitir nem sozinha —, levantei da cadeira com aquela inquietação boba que nem eu sabia explicar. Precisava fazer algo prático, algo que me trouxesse de volta pro controle. Decidi colocar uma música pra tocar no mercado, quebrar o silêncio metódico que geralmente reina ali, como tudo que eu planejo.

Abri o aplicativo no computador e, sem pensar demais, digitei direto: sertanejo. Sorri sozinha, lembrando da conversa que tive com Clara no meu escritório dias atrás — aquela discussão boba, quase provocativa, sobre música. Ela me acusando de gostar só de cantores mortos e eu tentando manter a pose. Mas o que ficou marcado mesmo foi o jeito como, sem pensar, ela soltou um “Ah, não, Vê... só hoje vai?!”

Foi instintivo, e eu lembro claramente do pânico nos olhos dela logo depois, tentando se desculpar, corrigir, engolir a palavra de volta. E eu ali, parada, absorvendo aquilo com um certo gosto. Vê. Foi tão natural. Quase íntimo.

Voltei ao presente com um leve calor no rosto. Escolhi a pasta com as clássicas, aquelas que ela citou com brilho nos olhos. Assim que a primeira música começou a tocar pelos alto-falantes, fui até a vidraça do meu escritório, aquele ponto estratégico de onde observo tudo sem ser notada.

Foi então que vi.

Clara, no caixa três, sem nem olhar pra cima, apontou a caneta para o ar com aquele gesto espontâneo, meio dançante, como quem diz: "Essa é boa, hein!"

E eu… ri. Um riso curto, sincero, escapando antes que eu conseguisse reprimir. Fazia tempo que algo me arrancava um sorriso assim — leve, desprevenido, sem custo.

Talvez, só talvez… essa história esteja começando a fugir do meu roteiro.


De onde estou, no alto do meu escritório envidraçado, tenho visão de tudo. Aprendi a observar sem ser vista — uma habilidade útil nos negócios… e, ultimamente, um vício silencioso quando se trata de Clara.

Vejo o movimento do caixa três com atenção. Clara está ali, como sempre, ágil, educada, mas tem algo diferente agora. Um rapaz está encostado no balcão. Não reconheço de imediato, talvez cliente novo — ou só mais um daqueles que confundem gentileza com convite.

Ele ri alto, exagerado, como se estivesse contando uma piada genial. E ela… não ri. Sorri com educação, mas tem os ombros tensos. Olha para o lado, brevemente. Tenta escanear os produtos mais rápido, mas ele continua ali, esticando o assunto. Mãos apoiadas demais no balcão. Corpo inclinado. Ar de quem acha que está encantando o mundo.

Sinto algo estranho apertar o peito. Uma mistura de incômodo, irritação… e um impulso que não costumo obedecer.

Levanto sem pensar. Desço as escadas com passos firmes, disfarçando a pressa. Passo pela sessão de pães, viro à esquerda, finjo checar uma prateleira. Quando chego perto, vejo com mais clareza: o desconforto no rosto de Clara é nítido. Ela me vê e, por um segundo, seus olhos brilham diferente. Um alívio contido. Mas nada muda na postura dela — profissional até o fim.

O rapaz ainda fala, agora sobre alguma festa, aparentemente tentando arrancar dela uma reação mais empolgada. Então me aproximo com um sorriso elegante e uma voz firme, mas doce o suficiente para não soar rude.

— Tudo certo por aqui, Clara?

Ela assente com um leve “sim”, mas eu noto o agradecimento escondido no olhar.

Viro então para o rapaz, mantendo o tom cordial:

— Boa tarde! Está encontrando tudo o que precisa na loja?

Ele me encara, desconcertado por um instante. Não esperava ser interrompido — muito menos pela dona do mercado. Sorri, sem graça, e balança a cabeça.

— Sim, sim… só conversando um pouco aqui com ela, né… o atendimento de vocês é ótimo.

— Fico feliz em saber — digo, ainda sorrindo, mas sem recuar um centímetro do meu lugar. Fico ali, ao lado de Clara, imóvel, firme, como um lembrete de que certos limites existem, mesmo quando não são ditos.

Ele pega as sacolas, agradece e finalmente vai embora.

Só então olho para ela de novo. Ela respira fundo, baixa os ombros, e diz num sussurro quase risonho:

— Achei que ele fosse acampar aqui.

Dou uma risada discreta.

— Achei melhor garantir que ele não montasse barraca.

Nossos olhares se encontram por um instante mais longo do que o normal. E eu me pergunto, pela centésima vez, desde quando me tornei alguém que desce pessoalmente para cuidar disso. E por que, com ela, parece que isso sempre vale a pena.


Subo as escadas de volta como quem tenta esconder um tropeço no próprio orgulho. Entro na sala, fecho a porta com calma, mas por dentro… estou longe de estar calma.

Me sento, respiro fundo, e olho para a tela do computador — mas não vejo nada. Meus olhos estão ali, mas minha cabeça ficou no caixa três. No gesto contido de alívio da Clara. No jeito como ela me olhou quando me viu chegando. Não foi só um “obrigada silencioso”. Foi mais. Foi confiança. Foi... entrega.

E isso me desmonta.

Porque eu não desço pro salão. Não “garanto o bem-estar de atendente”. Não me envolvo em situações que podem ser resolvidas com uma câmera de segurança ou um supervisor de turno. Mas com ela… tudo em mim parece contrariar minhas regras.

O que mais me incomoda — ou me assusta — é que eu nem hesitei. Levantei antes de pensar. Agi antes de calcular. E eu sempre calculo.

Sinto meu rosto esquentar só de lembrar da cena. A proximidade. A forma como fiquei ao lado dela, como se fosse algo natural. Como se eu... pertencesse ali.

Ela não disse muito depois. Mas aquele “Achei que ele fosse acampar aqui” me arrancou um sorriso que eu não me permitia há tempos. E minha resposta... até eu achei engraçada. Mas o que ficou mesmo foi o silêncio entre nós depois, aquele segundo de olho no olho em que tudo pareceu mais leve. Quase íntimo.

Agora aqui, sozinha de novo, sinto meu peito estranho. Nem dor, nem euforia. Um incômodo doce, se é que isso existe. Como se algo dentro de mim estivesse mudando de lugar. Lento, mas inevitável.

Talvez não seja só curiosidade. Talvez não seja só carisma. Talvez Clara tenha mesmo entrado — sem pedir licença — num lugar onde ninguém antes teve coragem de tocar.

E o pior é que… eu não quero que ela saia.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...