sábado, 5 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 36

Por Verônica...

Ao voltar minha atenção ao computador, vejo pelas câmeras Clara e Augusto conversando no caixa. Mas algo naquela cena me prende por mais tempo do que deveria. Não é só a proximidade — é o jeito como falam. Os gestos meio ríspidos, os olhos mais intensos do que o normal. Há tensão ali.

Eles parecem alterados, mas me forço a acreditar que seja só isso — orientações, talvez. Augusto tem esse jeito bruto mesmo, às vezes. E Clara… bom, Clara costuma segurar bem as pontas.

Mesmo assim, algo no meu estômago se contrai. Uma intuição incômoda, como se eu estivesse vendo só a ponta de um iceberg que preferia não descobrir o que esconde.

Tento não dar atenção. Viro o rosto, continuo oque estava fazendo. Mas a cena insiste em ficar comigo. Talvez porque, por mais que eu diga pra mim mesma que não tem nada, no fundo… eu já não tenho tanta certeza assim. Sair para pedir a explicação do Augusto em alguma mercadoria que não havia chegado, e depois voltei a meu escritório.

Voltei para minha sala, algo dentro de mim não sossegava. A possível conversa entre Clara e Augusto ainda rondava meus pensamentos. Não gosto de tirar conclusões precipitadas — não posso. Mas também não sou cega. Conheço o tom de voz de Augusto quando ele está dando orientação... e o de quando está pressionando alguém.

Passei a mão pelos papéis na mesa, tentando me concentrar, quando ouvi o motor de uma caminhonete estacionando. Levantei e fui até a porta para espiar. Um homem desceu, segurando uma prancheta e um capacete. Logo me veio à mente: o construtor. O projeto do açougue.

Respirei fundo. Uma parte de mim queria voltar a lidar com a tensão entre Clara e Augusto, mas a outra — a parte prática, que move esse mercado — sabia que havia coisas mais urgentes a resolver. Pelo menos por agora.

Fui até a porta de entrada.

— Bom dia — ele disse, simpático. — Sou o Raul. Vim conversar sobre a reforma e o início da construção do açougue.

— Claro, Raul. Bem-vindo — respondi, oferecendo um sorriso profissional. — Pode entrar, por favor. A gente conversa melhor lá dentro.

Enquanto caminhávamos, notei o olhar de Clara cruzando com o meu. Foi rápido. Atento. O suficiente para me lembrar de que ela percebe mais do que fala. Isso, por si só, já é algo a se observar.

Mas agora era hora de falar de cimento, prazos e plantas. Só que, mesmo com o barulho das ferramentas chegando, a pulga atrás da minha orelha ainda não tinha ido embora.

E eu nunca ignorei uma intuição minha.

Raul guardou a trena no coldre da cintura e passou a mão pela testa, enxugando o suor discreto. Tinha percorrido cada canto do mercado com olhar clínico, anotando tudo com precisão. Medidas, esquinas, reforços necessários. Era bom no que fazia — e rápido.

Fechei a porta do escritório atrás de nós, sentindo um alívio quase físico de estar de volta ao ar-condicionado. Raul se acomodou na cadeira à frente da mesa, desenrolando os papéis com a planta do novo açougue.

— A estrutura tá boa, Verônica. Dá pra trabalhar tranquilo aqui. Vai precisar só de reforço nas vigas da parede dos fundos, mas nada que complique o prazo — ele disse, marcando algo na folha com o dedo. — E se a senhora quiser, dá até pra integrar um pequeno balcão de atendimento direto pro salão.

Assenti, analisando cada linha com atenção.

— E o orçamento?

Ele virou a prancheta na minha direção, revelando os valores estimados, mão de obra, tempo previsto, tudo milimetricamente organizado.

— Aqui tá tudo detalhado. Como falamos antes, dá pra parcelar em três etapas, conforme a obra for avançando. E com o fornecedor que tenho, a gente consegue o material com desconto à vista — completou, me lançando um olhar de quem entende que tudo tem que caber no bolso também.

Peguei uma caneta e comecei a fazer algumas anotações ao lado.

— Pode me enviar isso por e-mail também? Assim eu deixo registrado com o contador.

— Mando ainda hoje — garantiu, já recolhendo os papéis.

Ficamos alguns segundos em silêncio. Eu olhei para ele, depois para a porta fechada. A movimentação do mercado seguia do lado de fora, abafada, como um mundo paralelo que eu comandava de dentro daquela sala.

— Raul — chamei, antes que ele se levantasse. — Discrição é importante pra mim. Essa reforma tem que ser tranquila. Sem bagunça, sem gente de fora demais, sem virar assunto entre os funcionários.

Ele assentiu, firme.

— Pode deixar. Comigo, serviço é no sigilo e no prazo.

— Ótimo — respondi, me levantando também. Estendi a mão para ele. — Negócio fechado, então.

Ele apertou minha mão com segurança.

— Fechado. Segunda-feira a gente começa.

Quando ele saiu, fiquei por um momento parada diante da mesa. O mercado estava prestes a mudar — fisicamente, sim, mas havia algo mais. Um novo ritmo, novas presenças, novos olhares.

E no meio disso tudo... pessoas que já estavam ali, mas que talvez eu estivesse começando a ver sob uma nova luz.

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O acaso a meu favor - Página 35

 Por Clara...

Quando Verônica passou por mim hoje, me cumprimentando, meu corpo reagiu de um jeito estranho. Por algum motivo, vê-la ali me trouxe uma sensação boa, quase um alívio. Mas, logo em seguida, me lembrei das palavras da Juliana. Na hora, me contive ao máximo e tentei me ocupar com qualquer coisa, só para evitar passar na frente daquele escritório.

Esse era o meu plano de agora em diante. Só que, quando comecei a achar que ele daria certo, Verônica mandou me chamar. Queria que eu fosse até o escritório. Naquele momento, meu corpo gelou.

Será que ela ficou sabendo dos comentários? Será que está achando que fui eu quem espalhou? Será que vai me ameaçar, dizendo que, se eu não me calar, posso ser mandado embora? Que posso acabar prejudicado no mercado?

São tantas perguntas, tantos medos misturados...

Eu só percebi que estava segurando uma flanela quando já estava de pé na frente do escritório. Era como se minha mente precisasse se agarrar a algo conhecido, algo concreto, pra não se perder na ansiedade.

Entrei esperando o pior. Depois dos comentários, das insinuações, da tensão no ar... não podia ser algo bom. Mas, conforme Verônica foi falando, as palavras não vieram como acusação, e sim como reconhecimento. E, por mais que eu tentasse resistir, aquilo me desmontou.

Senti meu corpo ceder, os ombros relaxarem, a tensão me abandonar aos poucos. E isso me fez pensar: por que a presença dela me afeta tanto? Por que o que ela diz tem esse peso sobre mim? Não é normal eu reagir assim.

A verdade é que estou começando a sentir algo que vai além da admiração profissional. É respeito, sim. É gratidão, também. Mas tem uma curiosidade, um brilho nos olhos quando ela entra na sala. Uma vontade de agradar, de ser notada — não pela chefia, mas por ela.

E isso me assusta. Porque não sei onde isso vai dar, nem se é recíproco, nem se é certo sentir isso dentro do ambiente em que estou. Mas o que sei é que, toda vez que ela fala comigo daquele jeito... eu esqueço, por um momento, de todos os riscos.

Saí da sala um pouco atordoada pelos sentimentos, mas aliviada por saber que ela não pensava o pior de mim. Meus passos ainda estavam leves demais para alguém que achava que sairia dali em apuros. Voltei para o caixa tentando retomar o foco, mas dei de cara com Augusto — e sua expressão fechada.

Assim que me viu, ele não perdeu tempo:

— Até que enfim, né? O que você aprontou pra levar um esporro tão demorado? — disse, já contornando o caixa para sair.

— Eu não tenho tempo pra ficar fazendo serviço dos outros, não! — reclamou, passando por mim sem nem me olhar direito.

Respirei fundo, tentando manter a calma. Então, soltei:

— Então, meu amigo... — ele já virava o corpo na minha direção, curioso.

— Cê reclama com ela.

Augusto parou por um segundo, me olhando como se não tivesse certeza se tinha ouvido direito.

— Como é que é? — ele perguntou, com um sorriso irônico que não chegava nos olhos. — Agora você tá mandando em quem eu devo reclamar?

— Não tô mandando em nada, Augusto — respondi, firme. — Só tô dizendo que se tá incomodado com o tempo que eu demorei, resolve com quem me chamou. Porque foi ela quem pediu pra eu ir.

— E você foi, né? Correndo. Igual um cachorrinho atrás de ossinho — ele cuspiu as palavras, carregadas de veneno. — Impressionante.

Fiquei em silêncio por um momento. O tipo de silêncio que corta mais do que grito. Ele sabia que tinha passado dos limites — e ainda assim, parecia satisfeito por isso.

— Você tá com algum problema comigo, é isso? — perguntei, encarando ele de frente.

— Não. Meu problema é com gente que esquece onde tá pisando — ele respondeu. — Com gente que acha que pode se escorar nos outros e depois posar de inocente.

— Engraçado… — respondi, cruzando os braços. — Porque, até onde eu sei, eu sempre fiz minha parte. E mais um pouco. Se alguém aqui anda se escorando, não sou eu.

Ele riu de canto, mas já não tinha resposta. Ficou apenas me encarando, como se estivesse tentando decidir se valia a pena continuar o embate ou não.

— Quer saber? — ele disse por fim, dando meia-volta. — Fica aí com tua chefe protetora.

E saiu.

Eu respirei fundo, tentando não deixar que aquilo me afetasse mais do que já tinha afetado. Mas era difícil. Porque, por trás da raiva dele, tinha algo mais. Inveja? Ciúme? Medo? Eu ainda não sabia. Mas sabia que aquela história estava longe de acabar.

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quarta-feira, 2 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 34

 Continuação por Verônica parte lll...

 Chego ao mercado por volta das 9h da manhã. Ao estacionar, observo Clara jogando água na calçada. Percebo que ela já está terminando. Imagino que tenha notado minha chegada — é difícil não perceber. A presença do meu carro, parado ao lado do mercado, costuma anunciar minha chegada sem muito esforço.

Desço do carro e, a poucos metros dela, a cumprimento com naturalidade:

— Bom dia, Clara.

Ela levanta os olhos em minha direção e, com uma timidez contida — quase hesitante —, responde:

— Bom dia, Verônica.

Sua voz é baixa, cuidadosa, como se estivesse pisando em território sensível. E isso apenas confirma o que o Luiz me disse ontem. Clara está, de fato, tentando se afastar. Como se já tivesse aceitado que manter distância de mim fosse mais seguro.

Ofereço um sorriso leve, tentando quebrar a tensão, e sigo em direção ao mercado. Cumprimento o restante da equipe com um aceno breve. Logo vejo Augusto, com uma folha nas mãos que me parece ser o controle de mercadorias.

— Bom dia, Augusto! — chamo.

Ele levanta o olhar e logo se posiciona à minha frente, atento.

— Está melhor?

Ele responde com prontidão, num tom cordial:

— Bom dia, Verônica. Estou bem melhor, obrigado.

O analiso por um instante e percebo que, de fato, ele parece estar bem. Seu semblante está mais leve, e sua postura é firme. Aproveito que o movimento da manhã ainda está fraco, e decido agir.

— Chama a Clara no meu escritório, por favor.

Augusto me olha com certa surpresa, talvez esperando uma explicação que não virá. Não agora. Apenas sustento o olhar por um breve momento, depois lhe dou as costas e sigo em direção à minha sala.

Fecho a porta atrás de mim, tentando organizar meus pensamentos. Agora não é hora de emoção. É hora de clareza.

Sento-me à mesa, mas permaneço inquieta. Sei que, em poucos minutos, Clara entrará por aquela porta — e que o que for dito ali poderá mudar o rumo das coisas.

                                                       ..................................

Quando menos espero ouço leves batidas na porta, e deduzo ser Clara. Ao ter certeza a peço para entrar na sala e fechar a porta.

— Clara, tem um minuto? — perguntei, com a voz mais neutra possível.

Ela entrou hesitante, segurando uma flanela como se fosse escudo. Me olhou com aquela expressão de quem já estava esperando alguma coisa ruim. O que me cortou mais do que qualquer fala maldosa do dia.

Esperei ela se sentar, respirei fundo e fui direto ao ponto — mas com um tom baixo, quase gentil:

— Ouvi algumas coisas ontem pelos corredores. Coisas que não me agradaram. E que, sinceramente, me preocupam.

Ela me olhou surpresa. Eu continuei:

— Comentários... sobre você. Sobre mim. Sobre o fato de almoçarmos juntas às vezes, ou de você entrar no escritório com frequência.

Vi os olhos dela se arregalarem. A expressão encolheu. Estava quase pedindo desculpas sem palavras. Então, antes que dissesse qualquer coisa que não precisava dizer, fui clara:

— Você não está fazendo nada de errado, Clara. Eu sei que você é dedicada, honesta, e que está aqui porque merece. E se alguém insinua o contrário, o problema não é você. É a cabeça pequena de quem prefere apontar o dedo do que fazer o próprio trabalho com o mesmo empenho.

Ela não falou nada de imediato, só mordeu o canto da boca, tensa. Então eu terminei:

— Eu só queria que você soubesse que tem meu respeito. E que não deve abaixar a cabeça por algo que não fez. Se quiser parar de vir aqui no escritório ou evitar almoçar algumas vezes comigo pra não alimentar fofoca... eu vou entender. Mas não é o que quero. Só quero que você se sinta segura.

Pela primeira vez no dia, sinto que ela relaxou os ombros. Ainda em silêncio, assentiu de leve com a cabeça.

— Obrigada por me chamar aqui. — murmurou. — Acho que... eu precisava ouvir isso mais do que imaginava.

Eu apenas sorri. Não tinha mais nada a dizer. Mas naquela troca curta, silenciosa, ficou claro: a ponte entre nós não estava abalada — talvez só estivesse começando a se firmar.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...