quarta-feira, 2 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 34

 Continuação por Verônica parte lll...

 Chego ao mercado por volta das 9h da manhã. Ao estacionar, observo Clara jogando água na calçada. Percebo que ela já está terminando. Imagino que tenha notado minha chegada — é difícil não perceber. A presença do meu carro, parado ao lado do mercado, costuma anunciar minha chegada sem muito esforço.

Desço do carro e, a poucos metros dela, a cumprimento com naturalidade:

— Bom dia, Clara.

Ela levanta os olhos em minha direção e, com uma timidez contida — quase hesitante —, responde:

— Bom dia, Verônica.

Sua voz é baixa, cuidadosa, como se estivesse pisando em território sensível. E isso apenas confirma o que o Luiz me disse ontem. Clara está, de fato, tentando se afastar. Como se já tivesse aceitado que manter distância de mim fosse mais seguro.

Ofereço um sorriso leve, tentando quebrar a tensão, e sigo em direção ao mercado. Cumprimento o restante da equipe com um aceno breve. Logo vejo Augusto, com uma folha nas mãos que me parece ser o controle de mercadorias.

— Bom dia, Augusto! — chamo.

Ele levanta o olhar e logo se posiciona à minha frente, atento.

— Está melhor?

Ele responde com prontidão, num tom cordial:

— Bom dia, Verônica. Estou bem melhor, obrigado.

O analiso por um instante e percebo que, de fato, ele parece estar bem. Seu semblante está mais leve, e sua postura é firme. Aproveito que o movimento da manhã ainda está fraco, e decido agir.

— Chama a Clara no meu escritório, por favor.

Augusto me olha com certa surpresa, talvez esperando uma explicação que não virá. Não agora. Apenas sustento o olhar por um breve momento, depois lhe dou as costas e sigo em direção à minha sala.

Fecho a porta atrás de mim, tentando organizar meus pensamentos. Agora não é hora de emoção. É hora de clareza.

Sento-me à mesa, mas permaneço inquieta. Sei que, em poucos minutos, Clara entrará por aquela porta — e que o que for dito ali poderá mudar o rumo das coisas.

                                                       ..................................

Quando menos espero ouço leves batidas na porta, e deduzo ser Clara. Ao ter certeza a peço para entrar na sala e fechar a porta.

— Clara, tem um minuto? — perguntei, com a voz mais neutra possível.

Ela entrou hesitante, segurando uma flanela como se fosse escudo. Me olhou com aquela expressão de quem já estava esperando alguma coisa ruim. O que me cortou mais do que qualquer fala maldosa do dia.

Esperei ela se sentar, respirei fundo e fui direto ao ponto — mas com um tom baixo, quase gentil:

— Ouvi algumas coisas ontem pelos corredores. Coisas que não me agradaram. E que, sinceramente, me preocupam.

Ela me olhou surpresa. Eu continuei:

— Comentários... sobre você. Sobre mim. Sobre o fato de almoçarmos juntas às vezes, ou de você entrar no escritório com frequência.

Vi os olhos dela se arregalarem. A expressão encolheu. Estava quase pedindo desculpas sem palavras. Então, antes que dissesse qualquer coisa que não precisava dizer, fui clara:

— Você não está fazendo nada de errado, Clara. Eu sei que você é dedicada, honesta, e que está aqui porque merece. E se alguém insinua o contrário, o problema não é você. É a cabeça pequena de quem prefere apontar o dedo do que fazer o próprio trabalho com o mesmo empenho.

Ela não falou nada de imediato, só mordeu o canto da boca, tensa. Então eu terminei:

— Eu só queria que você soubesse que tem meu respeito. E que não deve abaixar a cabeça por algo que não fez. Se quiser parar de vir aqui no escritório ou evitar almoçar algumas vezes comigo pra não alimentar fofoca... eu vou entender. Mas não é o que quero. Só quero que você se sinta segura.

Pela primeira vez no dia, sinto que ela relaxou os ombros. Ainda em silêncio, assentiu de leve com a cabeça.

— Obrigada por me chamar aqui. — murmurou. — Acho que... eu precisava ouvir isso mais do que imaginava.

Eu apenas sorri. Não tinha mais nada a dizer. Mas naquela troca curta, silenciosa, ficou claro: a ponte entre nós não estava abalada — talvez só estivesse começando a se firmar.

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O acaso a meu favor - Página 33

 Continuação pela Verônica....

Como hoje dei folga ao Augusto, fiquei até o horário de fechamento. Aproveitei o período mais calmo da noite para revisar algumas informações no sistema, especialmente a ficha da funcionária Juliana.

Ao abrir o cadastro dela, não pude deixar de notar certos padrões que me chamaram a atenção. Vi que ela tem uma filha pequena — um bebê — e que há diversos atestados em nome dela e da criança. Muitos, até demais. Também encontrei várias faltas, algumas justificadas, outras não. E o que mais me incomodou foi a frequência: é como se sempre houvesse um motivo, uma ausência, uma brecha.

Fiquei em silêncio, encarando a tela. Não quero julgar antes da hora, mas algo nessa ficha não bate. Será que estou diante de alguém realmente sobrecarregada... ou alguém que aprendeu a se esconder atrás da justificativa certa na hora certa?

Fechei o sistema com uma leve inquietação no peito. Ainda não sei ao certo o que está acontecendo — mas tenho cada vez mais certeza de que tem algo aí que eu preciso entender melhor.


Ainda sentindo o peso da ficha de Juliana, decido abrir também a de Clara. Talvez por instinto, talvez para entender melhor o que está em jogo. E, assim que leio as primeiras linhas, sou surpreendida — mas dessa vez, de forma positiva.

O histórico de Clara é impecável. Nenhum atestado recente, nenhuma falta injustificada, nenhum registro disciplinar. Pelo contrário: presença constante, horários cumpridos com rigor, e anotações elogiosas vindas de turistas que avalia nosso mercado. Mas o que mais me chama a atenção são os registros feitos por Augusto.

Vejo várias observações indicando que Clara assumiu responsabilidades além de sua função de operadora de caixa — organizando estoque, apoiando na escala, cuidando de pequenos treinamentos com novos funcionários. E tudo isso escrito com um tom quase natural, como se fosse um direito dela fazer mais do que a função para a qual foi contratada. Como se ela devesse isso ao setor.

Franzo a testa. A dedicação dela é inegável, mas agora percebo uma sobrecarga disfarçada de confiança. Será que ela realmente quis assumir tudo isso? Ou será que, aos poucos, foi empurrada para ocupar espaços que não eram dela — e que agora estão sendo usados como justificativa para invejas e rumores?

Fecho a ficha com um incômodo crescendo dentro de mim. O problema é mais profundo do que parece. E talvez eu tenha deixado passar sinais importantes.

Faço algumas ligações para confirmar o início do projeto de construção do açougue, que será integrado à nova cozinha nos fundos do mercado. Há um espaço generoso ali atrás, que venho estudando há algum tempo. Quero aproveitar para reformar também o depósito de mercadorias — torná-lo mais funcional, organizado, à altura do crescimento que estamos buscando.

Já analisei nossa verba com cuidado, revisei as finanças e solicitei um pré-orçamento. Tudo parece dentro do possível, e agora só falta um passo: a visita do construtor, agendada para amanhã. Preciso que ele veja o espaço pessoalmente, avalie a estrutura, e, principalmente, entenda a dinâmica do nosso dia a dia.

Mesmo diante de tantas tensões internas, sigo com esse projeto. Porque, apesar de tudo, o mercado precisa continuar. E, de certa forma, tocar essa reforma também é uma forma de reorganizar o ambiente — física e emocionalmente.

Finalizamos a noite bem, graças aos céus. O movimento acalmou, os corredores foram esvaziando aos poucos, e vejo o pessoal se organizando para ir embora. Alguns riem discretamente, outros apenas agradecem e seguem em silêncio — cada um levando o dia consigo.

Fico mais um pouco. Preciso adiantar alguns relatórios antes de encerrar de vez. A rotina me dá certa paz, como se colocar números no lugar ajudasse a organizar também os pensamentos.

Mas enquanto os papéis se acumulam sobre a mesa, sei que ainda há algo que não posso adiar. Preciso conversar com a Clara. Sobre mais cedo. Sobre tudo o que veio à tona depois.

Decido que amanhã estarei aqui cedo. Não posso adiar essa conversa com Clara. Preciso esclarecer tudo de uma vez, por ela, por mim, e pelo ambiente ao nosso redor que começa a rachar em silêncio. Se for preciso tomar uma decisão difícil, que seja. Nem que doa. Mas que seja pelo bem dela — pelo bem de alguém que só tem dado o melhor, mesmo em meio a tanta desconfiança.

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O acaso a meu favor - Página 32

 Por Verônica...

Até agora, eu ainda não entendi o que aconteceu. Tirei os óculos e os pus sobre a mesa, afundando os dedos entre os cabelos, pensando: Mais um problema. E o pior — com a Clara envolvida. E ainda pior — envolvida de forma negativa.

Ainda não esclareci essa história, e, pra ser sincera, nem sei se quero. Estou sobrecarregada, com tantos problemas, tantas metas que precisam ser entregues antes da temporada de julho. Mal consigo respirar. Tudo parece se acumular ao mesmo tempo, e essa situação com a Clara veio como um peso extra que eu não pedi.

Vejo que, mesmo tendo agido com a intenção de fazer o certo, não me sinto bem por ter falado daquele jeito com ela. Observo Clara sair apressadamente, visivelmente atordoada, sem nem ao menos se despedir ou fazer aquela pequena festa que costuma fazer antes de encerrar o expediente. Aquela energia dela, sempre tão presente, hoje... sumiu.

Respiro fundo, e a culpa começa a me pesar no peito. Não era para ser assim. Não era para acabar assim.

Saio do escritório com a intenção de beber um copo de água — minha cabeça está prestes a explodir. No caminho, noto que um dos funcionários que está cumprindo aviso prévio permaneceu para finalizar a seção que o Augusto, no meio da confusão, não conseguiu organizar.

Enquanto encho um copo descartável de água e dou alguns goles, chamo por ele:

— Luiz.

Ele me olha, aguardando alguma ordem.

— Posso conversar um pouco com você no meu escritório?

O olhar dele muda imediatamente. Parece preocupado, como se tentasse, em silêncio, lembrar o que poderia ter feito de errado. Mas apenas larga o que estava fazendo e me segue, sem dizer uma palavra.

Ele entra no escritório, e logo peço que se sente. Ele obedece, ainda em silêncio. Viro minha cadeira, me posicionando de frente para ele, e pergunto com calma:

— Você estava próximo da situação das brigas entre as meninas... Pode me contar o que aconteceu?

Luiz me encara por um instante, visivelmente desconfiado. Pelo que percebo, ele é próximo das duas e parece relutante, talvez com medo de expô-las ou de causar algum problema maior.

Percebo sua hesitação e tento tranquilizá-lo, deixando claro que minha intenção não é prejudicar ninguém.

— Pode ficar tranquilo, Luiz. Nada do que me disser aqui será usado contra você ou contra as meninas — falo com sinceridade, olhando em seus olhos. — Mas alguma coisa aconteceu, e eu preciso entender. Quero evitar que isso se repita.

Ele respira fundo, ainda ponderando. Consigo ver no rosto dele o conflito entre a lealdade e o senso de responsabilidade.

Ao perceber que, de um jeito ou de outro, essa informação viria à tona — fosse dele ou de outro funcionário — Luiz cede.

— Parece que a Juliana insinuou que, por você e... — ele hesita. Tenta dizer o nome da Clara, mas a palavra não sai.

— Eu e...? — o incentivo com um olhar calmo, tentando passar confiança.

Ele baixa um pouco o olhar, respira fundo e, por fim, solta:

— Que você e a Clara, por estarem almoçando juntas algumas vezes... ou por passarem alguns minutos conversando no escritório... que ela estaria tendo privilégios aqui no mercado.

Fico em silêncio por um instante. O peso daquela suposição me atinge de forma amarga. Uma acusação velada, disfarçada de fofoca, mas que tem força suficiente para abalar relações, criar barreiras... e ferir.

Meu coração aperta. Não apenas pela injustiça da situação, mas pela forma como as coisas se espalham — silenciosas, cheias de veneno, sussurradas pelos cantos.

— Entendi... — murmuro, olhando fixamente para a parede por trás de Luiz, tentando digerir a informação. — E os outros funcionários? Elas comentaram algo, ou isso partiu só da Juliana?

Luiz balança a cabeça devagar, como se organizasse as lembranças antes de responder.

— No começo, só a Juliana. Mas depois... alguns começaram a repetir, sabe? Não com as mesmas palavras, mas com aquele tom. Como se tivessem comprado a ideia, mesmo sem provas. Foi aí que começaram os olhares atravessados, as indiretas... e aquele clima ruim.

Ele faz uma pausa, claramente desconfortável por estar expondo aquilo.

— Eu sei que a Clara.... ela irá se afastar um pouco por causa disso. E... sinceramente, deu pra ver que ela ficou bem abalada.

Fecho os olhos por um segundo, sentindo um nó se formar na garganta. A dor de saber que algo tão mesquinho conseguiu corroer o ambiente que lutei tanto para manter saudável é indescritível.

— Obrigada por ser honesto comigo, Luiz. Eu sei que isso não é fácil. — digo, com um leve aceno de cabeça.

Ele parece aliviado por ouvir isso, mas ainda inseguro. Então completa:

— Só... só tenta não deixar isso piorar pra elas, tá? Sei que você é justa. Só achei que você devia saber.

— Pode deixar. É exatamente por isso que estou tendo essa conversa. Preciso entender o que está acontecendo pra agir da forma certa. — respondo, firme.

Silêncio. Por um instante, apenas o som distante dos caixas e dos corredores preenchendo o espaço entre nós. Depois, Luiz se levanta devagar.

— Posso voltar lá fora?

— Pode sim, Luiz. E mais uma vez... obrigada.

Ele sai, e quando a porta se fecha atrás dele, me vejo ali, sozinha, sentindo o peso de mais uma camada dessa história — a que corre nos bastidores, longe dos olhos, mas que faz tanto estrago quanto um confronto direto.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...