quarta-feira, 2 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 33

 Continuação pela Verônica....

Como hoje dei folga ao Augusto, fiquei até o horário de fechamento. Aproveitei o período mais calmo da noite para revisar algumas informações no sistema, especialmente a ficha da funcionária Juliana.

Ao abrir o cadastro dela, não pude deixar de notar certos padrões que me chamaram a atenção. Vi que ela tem uma filha pequena — um bebê — e que há diversos atestados em nome dela e da criança. Muitos, até demais. Também encontrei várias faltas, algumas justificadas, outras não. E o que mais me incomodou foi a frequência: é como se sempre houvesse um motivo, uma ausência, uma brecha.

Fiquei em silêncio, encarando a tela. Não quero julgar antes da hora, mas algo nessa ficha não bate. Será que estou diante de alguém realmente sobrecarregada... ou alguém que aprendeu a se esconder atrás da justificativa certa na hora certa?

Fechei o sistema com uma leve inquietação no peito. Ainda não sei ao certo o que está acontecendo — mas tenho cada vez mais certeza de que tem algo aí que eu preciso entender melhor.


Ainda sentindo o peso da ficha de Juliana, decido abrir também a de Clara. Talvez por instinto, talvez para entender melhor o que está em jogo. E, assim que leio as primeiras linhas, sou surpreendida — mas dessa vez, de forma positiva.

O histórico de Clara é impecável. Nenhum atestado recente, nenhuma falta injustificada, nenhum registro disciplinar. Pelo contrário: presença constante, horários cumpridos com rigor, e anotações elogiosas vindas de turistas que avalia nosso mercado. Mas o que mais me chama a atenção são os registros feitos por Augusto.

Vejo várias observações indicando que Clara assumiu responsabilidades além de sua função de operadora de caixa — organizando estoque, apoiando na escala, cuidando de pequenos treinamentos com novos funcionários. E tudo isso escrito com um tom quase natural, como se fosse um direito dela fazer mais do que a função para a qual foi contratada. Como se ela devesse isso ao setor.

Franzo a testa. A dedicação dela é inegável, mas agora percebo uma sobrecarga disfarçada de confiança. Será que ela realmente quis assumir tudo isso? Ou será que, aos poucos, foi empurrada para ocupar espaços que não eram dela — e que agora estão sendo usados como justificativa para invejas e rumores?

Fecho a ficha com um incômodo crescendo dentro de mim. O problema é mais profundo do que parece. E talvez eu tenha deixado passar sinais importantes.

Faço algumas ligações para confirmar o início do projeto de construção do açougue, que será integrado à nova cozinha nos fundos do mercado. Há um espaço generoso ali atrás, que venho estudando há algum tempo. Quero aproveitar para reformar também o depósito de mercadorias — torná-lo mais funcional, organizado, à altura do crescimento que estamos buscando.

Já analisei nossa verba com cuidado, revisei as finanças e solicitei um pré-orçamento. Tudo parece dentro do possível, e agora só falta um passo: a visita do construtor, agendada para amanhã. Preciso que ele veja o espaço pessoalmente, avalie a estrutura, e, principalmente, entenda a dinâmica do nosso dia a dia.

Mesmo diante de tantas tensões internas, sigo com esse projeto. Porque, apesar de tudo, o mercado precisa continuar. E, de certa forma, tocar essa reforma também é uma forma de reorganizar o ambiente — física e emocionalmente.

Finalizamos a noite bem, graças aos céus. O movimento acalmou, os corredores foram esvaziando aos poucos, e vejo o pessoal se organizando para ir embora. Alguns riem discretamente, outros apenas agradecem e seguem em silêncio — cada um levando o dia consigo.

Fico mais um pouco. Preciso adiantar alguns relatórios antes de encerrar de vez. A rotina me dá certa paz, como se colocar números no lugar ajudasse a organizar também os pensamentos.

Mas enquanto os papéis se acumulam sobre a mesa, sei que ainda há algo que não posso adiar. Preciso conversar com a Clara. Sobre mais cedo. Sobre tudo o que veio à tona depois.

Decido que amanhã estarei aqui cedo. Não posso adiar essa conversa com Clara. Preciso esclarecer tudo de uma vez, por ela, por mim, e pelo ambiente ao nosso redor que começa a rachar em silêncio. Se for preciso tomar uma decisão difícil, que seja. Nem que doa. Mas que seja pelo bem dela — pelo bem de alguém que só tem dado o melhor, mesmo em meio a tanta desconfiança.

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O acaso a meu favor - Página 32

 Por Verônica...

Até agora, eu ainda não entendi o que aconteceu. Tirei os óculos e os pus sobre a mesa, afundando os dedos entre os cabelos, pensando: Mais um problema. E o pior — com a Clara envolvida. E ainda pior — envolvida de forma negativa.

Ainda não esclareci essa história, e, pra ser sincera, nem sei se quero. Estou sobrecarregada, com tantos problemas, tantas metas que precisam ser entregues antes da temporada de julho. Mal consigo respirar. Tudo parece se acumular ao mesmo tempo, e essa situação com a Clara veio como um peso extra que eu não pedi.

Vejo que, mesmo tendo agido com a intenção de fazer o certo, não me sinto bem por ter falado daquele jeito com ela. Observo Clara sair apressadamente, visivelmente atordoada, sem nem ao menos se despedir ou fazer aquela pequena festa que costuma fazer antes de encerrar o expediente. Aquela energia dela, sempre tão presente, hoje... sumiu.

Respiro fundo, e a culpa começa a me pesar no peito. Não era para ser assim. Não era para acabar assim.

Saio do escritório com a intenção de beber um copo de água — minha cabeça está prestes a explodir. No caminho, noto que um dos funcionários que está cumprindo aviso prévio permaneceu para finalizar a seção que o Augusto, no meio da confusão, não conseguiu organizar.

Enquanto encho um copo descartável de água e dou alguns goles, chamo por ele:

— Luiz.

Ele me olha, aguardando alguma ordem.

— Posso conversar um pouco com você no meu escritório?

O olhar dele muda imediatamente. Parece preocupado, como se tentasse, em silêncio, lembrar o que poderia ter feito de errado. Mas apenas larga o que estava fazendo e me segue, sem dizer uma palavra.

Ele entra no escritório, e logo peço que se sente. Ele obedece, ainda em silêncio. Viro minha cadeira, me posicionando de frente para ele, e pergunto com calma:

— Você estava próximo da situação das brigas entre as meninas... Pode me contar o que aconteceu?

Luiz me encara por um instante, visivelmente desconfiado. Pelo que percebo, ele é próximo das duas e parece relutante, talvez com medo de expô-las ou de causar algum problema maior.

Percebo sua hesitação e tento tranquilizá-lo, deixando claro que minha intenção não é prejudicar ninguém.

— Pode ficar tranquilo, Luiz. Nada do que me disser aqui será usado contra você ou contra as meninas — falo com sinceridade, olhando em seus olhos. — Mas alguma coisa aconteceu, e eu preciso entender. Quero evitar que isso se repita.

Ele respira fundo, ainda ponderando. Consigo ver no rosto dele o conflito entre a lealdade e o senso de responsabilidade.

Ao perceber que, de um jeito ou de outro, essa informação viria à tona — fosse dele ou de outro funcionário — Luiz cede.

— Parece que a Juliana insinuou que, por você e... — ele hesita. Tenta dizer o nome da Clara, mas a palavra não sai.

— Eu e...? — o incentivo com um olhar calmo, tentando passar confiança.

Ele baixa um pouco o olhar, respira fundo e, por fim, solta:

— Que você e a Clara, por estarem almoçando juntas algumas vezes... ou por passarem alguns minutos conversando no escritório... que ela estaria tendo privilégios aqui no mercado.

Fico em silêncio por um instante. O peso daquela suposição me atinge de forma amarga. Uma acusação velada, disfarçada de fofoca, mas que tem força suficiente para abalar relações, criar barreiras... e ferir.

Meu coração aperta. Não apenas pela injustiça da situação, mas pela forma como as coisas se espalham — silenciosas, cheias de veneno, sussurradas pelos cantos.

— Entendi... — murmuro, olhando fixamente para a parede por trás de Luiz, tentando digerir a informação. — E os outros funcionários? Elas comentaram algo, ou isso partiu só da Juliana?

Luiz balança a cabeça devagar, como se organizasse as lembranças antes de responder.

— No começo, só a Juliana. Mas depois... alguns começaram a repetir, sabe? Não com as mesmas palavras, mas com aquele tom. Como se tivessem comprado a ideia, mesmo sem provas. Foi aí que começaram os olhares atravessados, as indiretas... e aquele clima ruim.

Ele faz uma pausa, claramente desconfortável por estar expondo aquilo.

— Eu sei que a Clara.... ela irá se afastar um pouco por causa disso. E... sinceramente, deu pra ver que ela ficou bem abalada.

Fecho os olhos por um segundo, sentindo um nó se formar na garganta. A dor de saber que algo tão mesquinho conseguiu corroer o ambiente que lutei tanto para manter saudável é indescritível.

— Obrigada por ser honesto comigo, Luiz. Eu sei que isso não é fácil. — digo, com um leve aceno de cabeça.

Ele parece aliviado por ouvir isso, mas ainda inseguro. Então completa:

— Só... só tenta não deixar isso piorar pra elas, tá? Sei que você é justa. Só achei que você devia saber.

— Pode deixar. É exatamente por isso que estou tendo essa conversa. Preciso entender o que está acontecendo pra agir da forma certa. — respondo, firme.

Silêncio. Por um instante, apenas o som distante dos caixas e dos corredores preenchendo o espaço entre nós. Depois, Luiz se levanta devagar.

— Posso voltar lá fora?

— Pode sim, Luiz. E mais uma vez... obrigada.

Ele sai, e quando a porta se fecha atrás dele, me vejo ali, sozinha, sentindo o peso de mais uma camada dessa história — a que corre nos bastidores, longe dos olhos, mas que faz tanto estrago quanto um confronto direto.

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terça-feira, 1 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 31

 Continuação da cena por Clara - Parte ll...

Ao sair do banheiro, a encontro mais relaxada. Está sentada no sofá, os ombros menos tensos, o olhar um pouco mais leve. Um sorriso involuntário me escapa — vê-la bem, mesmo que por instantes, ainda mexe comigo. Por reflexo, quase sem pensar, a convido para jantar. Ela aceita sem hesitar, como se ainda fôssemos nós, como se nada tivesse se quebrado entre aquele "oi" e esse agora.

Ela começa a arrumar a mesa com a naturalidade de quem já pertenceu àquele espaço. E eu vou para a cozinha, assumindo o comando da comida. Não trocamos muitas palavras. O silêncio não era hostil, mas tampouco era confortável. Era... suportável.

E aí, no meio daquele silêncio cheio de pratos e talheres, eu percebi: era isso o que sempre tínhamos tido antes do fim. Suportável. Nunca foi exatamente paz — era apenas uma ausência momentânea de guerra. Um cuidado constante em não pisar forte demais, em não falar alto demais, em não sentir demais.

Era como viver sobre uma superfície fina de gelo — e eu sempre soube que, um dia, isso iria romper.


Lembro com nitidez dos momentos em que tentei alcançá-la. Tentava chamar sua atenção com palavras brandas, com gestos, com um amor quase desesperado por salvar o que ainda restava. Tentava arrancá-la daquela ira que parecia morar em seu peito — mas, invariavelmente, quem acabava ferida era eu.

A cada tentativa de diálogo, a cada vez que me abria para dizer o que me doía, o retorno era o silêncio. Ou pior: o descaso, aquele olhar perdido que me dizia que minhas dores não tinham importância. Como se eu fosse invisível no meio do furacão que ela mesma carregava.

E hoje, olhando para tudo com a distância que a solidão permite, percebo que ficar sozinha foi, talvez, o maior presente que ela pôde me dar. Porque ali, naquele abandono, eu finalmente me libertei. Me libertei da necessidade constante de consertar o inquebrável, de entender o que não era meu para curar. Me libertei da guerra que, por tanto tempo, travava sozinha em nome de um “nós” que só existia na minha esperança.

Sentamos à mesa. A comida entre nós é simples, mas quente — quase reconfortante. Bento se enrola aos pés de Camila, como se ela nunca tivesse partido. Ela sorri com isso, pega um pedaço de pão, mas hesita antes da primeira mordida. Sinto no ar que ela quer falar. A respiração mais longa, o olhar que evita o meu, os dedos inquietos na borda do copo.

— Clara... — começa, finalmente. A voz dela é baixa, como se pisasse em território sagrado. — Sobre esses meses... sobre o sumiço...

Levanto os olhos devagar, sem pressa. Ela continua:

— Eu não sabia como voltar. Tinha medo do que você ia dizer. Medo de me encarar depois de tudo que eu...

— Camila. — a interrompo, sem levantar o tom, mas com firmeza. — Talvez hoje não seja o melhor dia pra isso.

Ela engole o resto da frase como se tivesse gosto amargo. Olha para o prato, balança a cabeça levemente, em silêncio. O clima muda, mas não explode. Só se torna mais denso, mais cheio de tudo o que não está sendo dito.

— Eu entendo. — ela murmura, quase para si mesma.

Continuamos a comer. Mastigamos o jantar, e com ele, todas as palavras engasgadas entre nós. Às vezes, nossos olhos se cruzam, mas nenhum de nós segura o olhar por muito tempo.

Terminamos o jantar em silêncio, cada um mergulhado no próprio prato, no próprio passado. Os talheres descansam agora sobre os pratos vazios, e Bento, já satisfeito com os carinhos e a presença, se acomoda num canto, observando tudo com olhos semicerrados.

Camila se levanta devagar, como quem entende que o tempo ali acabou — não só o do jantar, mas o do que restava entre nós. Ela começa a juntar os pratos com o mesmo cuidado com que, um dia, eu tentei juntar os pedaços de algo que ela mesma quebrou.

— Eu... — ela começa, mas para no meio da frase, com os olhos presos aos meus por um breve instante. Não há raiva, nem mágoa. Apenas cansaço e o eco do que já fomos.

Me levanto também, caminhando até a porta antes que as palavras voltem. Não quero mais explicações. Algumas coisas, quando ditas, só machucam mais.

Ela entende. Camila sempre soube ler silêncios melhor do que palavras.

— Obrigada por hoje — diz por fim, com uma honestidade rara, talvez pela primeira vez em muito tempo.

— Cuida de você — respondo, e minha voz sai firme, mesmo com o nó na garganta.

Ela sorri, triste. Um sorriso de despedida, de quem entende que o retorno talvez não seja mais possível — e que, no fundo, nunca foi.

Abro o portão. Ela passa por mim devagar, e antes de seguir pela calçada, se vira uma última vez. O olhar dela se prende no meu por alguns segundos que parecem eternos. Nenhum de nós diz nada.

Ela vai.

E, assim, eu fecho a porta. Sem pressa. Sem drama. Apenas fecho.

E pela primeira vez em muito tempo, sinto que algo dentro de mim também começa a se fechar — mas em paz.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...