Por Verônica...
Depois dessa reflexão toda — que, aliás, não costumo permitir nem sozinha —, levantei da cadeira com aquela inquietação boba que nem eu sabia explicar. Precisava fazer algo prático, algo que me trouxesse de volta pro controle. Decidi colocar uma música pra tocar no mercado, quebrar o silêncio metódico que geralmente reina ali, como tudo que eu planejo.
Abri o aplicativo no computador e, sem pensar demais, digitei direto: sertanejo. Sorri sozinha, lembrando da conversa que tive com Clara no meu escritório dias atrás — aquela discussão boba, quase provocativa, sobre música. Ela me acusando de gostar só de cantores mortos e eu tentando manter a pose. Mas o que ficou marcado mesmo foi o jeito como, sem pensar, ela soltou um “Ah, não, Vê... só hoje vai?!”
Foi instintivo, e eu lembro claramente do pânico nos olhos dela logo depois, tentando se desculpar, corrigir, engolir a palavra de volta. E eu ali, parada, absorvendo aquilo com um certo gosto. Vê. Foi tão natural. Quase íntimo.
Voltei ao presente com um leve calor no rosto. Escolhi a pasta com as clássicas, aquelas que ela citou com brilho nos olhos. Assim que a primeira música começou a tocar pelos alto-falantes, fui até a vidraça do meu escritório, aquele ponto estratégico de onde observo tudo sem ser notada.
Foi então que vi.
Clara, no caixa três, sem nem olhar pra cima, apontou a caneta para o ar com aquele gesto espontâneo, meio dançante, como quem diz: "Essa é boa, hein!"
E eu… ri. Um riso curto, sincero, escapando antes que eu conseguisse reprimir. Fazia tempo que algo me arrancava um sorriso assim — leve, desprevenido, sem custo.
Talvez, só talvez… essa história esteja começando a fugir do meu roteiro.
De onde estou, no alto do meu escritório envidraçado, tenho visão de tudo. Aprendi a observar sem ser vista — uma habilidade útil nos negócios… e, ultimamente, um vício silencioso quando se trata de Clara.
Vejo o movimento do caixa três com atenção. Clara está ali, como sempre, ágil, educada, mas tem algo diferente agora. Um rapaz está encostado no balcão. Não reconheço de imediato, talvez cliente novo — ou só mais um daqueles que confundem gentileza com convite.
Ele ri alto, exagerado, como se estivesse contando uma piada genial. E ela… não ri. Sorri com educação, mas tem os ombros tensos. Olha para o lado, brevemente. Tenta escanear os produtos mais rápido, mas ele continua ali, esticando o assunto. Mãos apoiadas demais no balcão. Corpo inclinado. Ar de quem acha que está encantando o mundo.
Sinto algo estranho apertar o peito. Uma mistura de incômodo, irritação… e um impulso que não costumo obedecer.
Levanto sem pensar. Desço as escadas com passos firmes, disfarçando a pressa. Passo pela sessão de pães, viro à esquerda, finjo checar uma prateleira. Quando chego perto, vejo com mais clareza: o desconforto no rosto de Clara é nítido. Ela me vê e, por um segundo, seus olhos brilham diferente. Um alívio contido. Mas nada muda na postura dela — profissional até o fim.
O rapaz ainda fala, agora sobre alguma festa, aparentemente tentando arrancar dela uma reação mais empolgada. Então me aproximo com um sorriso elegante e uma voz firme, mas doce o suficiente para não soar rude.
— Tudo certo por aqui, Clara?
Ela assente com um leve “sim”, mas eu noto o agradecimento escondido no olhar.
Viro então para o rapaz, mantendo o tom cordial:
— Boa tarde! Está encontrando tudo o que precisa na loja?
Ele me encara, desconcertado por um instante. Não esperava ser interrompido — muito menos pela dona do mercado. Sorri, sem graça, e balança a cabeça.
— Sim, sim… só conversando um pouco aqui com ela, né… o atendimento de vocês é ótimo.
— Fico feliz em saber — digo, ainda sorrindo, mas sem recuar um centímetro do meu lugar. Fico ali, ao lado de Clara, imóvel, firme, como um lembrete de que certos limites existem, mesmo quando não são ditos.
Ele pega as sacolas, agradece e finalmente vai embora.
Só então olho para ela de novo. Ela respira fundo, baixa os ombros, e diz num sussurro quase risonho:
— Achei que ele fosse acampar aqui.
Dou uma risada discreta.
— Achei melhor garantir que ele não montasse barraca.
Nossos olhares se encontram por um instante mais longo do que o normal. E eu me pergunto, pela centésima vez, desde quando me tornei alguém que desce pessoalmente para cuidar disso. E por que, com ela, parece que isso sempre vale a pena.
Subo as escadas de volta como quem tenta esconder um tropeço no próprio orgulho. Entro na sala, fecho a porta com calma, mas por dentro… estou longe de estar calma.
Me sento, respiro fundo, e olho para a tela do computador — mas não vejo nada. Meus olhos estão ali, mas minha cabeça ficou no caixa três. No gesto contido de alívio da Clara. No jeito como ela me olhou quando me viu chegando. Não foi só um “obrigada silencioso”. Foi mais. Foi confiança. Foi... entrega.
E isso me desmonta.
Porque eu não desço pro salão. Não “garanto o bem-estar de atendente”. Não me envolvo em situações que podem ser resolvidas com uma câmera de segurança ou um supervisor de turno. Mas com ela… tudo em mim parece contrariar minhas regras.
O que mais me incomoda — ou me assusta — é que eu nem hesitei. Levantei antes de pensar. Agi antes de calcular. E eu sempre calculo.
Sinto meu rosto esquentar só de lembrar da cena. A proximidade. A forma como fiquei ao lado dela, como se fosse algo natural. Como se eu... pertencesse ali.
Ela não disse muito depois. Mas aquele “Achei que ele fosse acampar aqui” me arrancou um sorriso que eu não me permitia há tempos. E minha resposta... até eu achei engraçada. Mas o que ficou mesmo foi o silêncio entre nós depois, aquele segundo de olho no olho em que tudo pareceu mais leve. Quase íntimo.
Agora aqui, sozinha de novo, sinto meu peito estranho. Nem dor, nem euforia. Um incômodo doce, se é que isso existe. Como se algo dentro de mim estivesse mudando de lugar. Lento, mas inevitável.
Talvez não seja só curiosidade. Talvez não seja só carisma. Talvez Clara tenha mesmo entrado — sem pedir licença — num lugar onde ninguém antes teve coragem de tocar.
E o pior é que… eu não quero que ela saia.
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