quarta-feira, 16 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 39

Por Clara...

Hoje, como em tantos outros dias, sempre aparece um que confunde gentileza com 'ela tá me dando mole'. E, sinceramente, isso cansa. Chega a ser estressante ter que suportar o infeliz até que ele finalmente perceba — ou aceite — que não estamos interessadas. E ainda tem outra: será que é tão difícil assim perceber que eu gosto de mulheres? Será que não carrego isso no olhar, no jeito, na fala? Ou será que alguns escolhem não ver, porque só enxergam o que convém ao ego deles?

Hoje, quem me livrou de um cara inconveniente foi a Verônica. E, olha… ver ela chegar com aquele olhar sério, carregado de desagrado com a cena, me trouxe um alívio imenso. Ela não precisou dizer nada — a postura dela foi o bastante para o sujeito se tocar e ir embora. É nesses momentos que a gente percebe quem realmente nos protege. Porque, se fosse o Augusto, ele teria me repreendido. Ia dizer que eu estava dando 'liberdades', como se a culpa pelo incômodo fosse minha. Como se o mínimo de educação que ofereço já fosse um convite. E é exatamente esse tipo de pensamento que esgota. Principalmente vindo de um gerente.

A frase e o olhar da Verônica, no fim de tudo, me deixaram com uma leve, mas marcante, sensação de proteção. E isso, especialmente no meu ambiente de trabalho, onde tantas vezes preciso me manter firme sozinha, fez toda a diferença. Foi como se, naquele instante, eu pudesse respirar mais fundo. Saber que alguém está ali, atenta, pronta para intervir quando for preciso, me lembrou que não preciso carregar tudo sozinha — nem sempre.

Tirando esse episódio, aproveitei cada música que tocava no mercado. Afinal, eram justamente das minhas playlists favoritas. Aqueles sons, que eu mesma escolhi com tanto carinho, preenchiam o ambiente e, de algum jeito, também me preenchiam. Era como se, por alguns instantes, tudo estivesse em sintonia — o movimento do mercado, o ritmo das pessoas e até o meu próprio humor.

Pelo visto, Verônica está mesmo levando a sério aquela conversa sobre mudança de dentro pra fora. Hoje apareceu por aqui um senhor de cabelos grisalhos, com uma trena na mão, medindo cada canto do mercado. Eu, como boa curiosa que sou, ficava só de rabo de olho, acompanhando cada passo dele, tentando adivinhar o que ele pretendia com cada medição. Parecia que até as paredes iam passar por transformação. E, confesso, aquilo me deixou animada — mudanças, quando vêm com propósito, costumam trazer boas surpresas.

Às vezes, me pego observando Verônica em silêncio — na correria, nas decisões rápidas, nos detalhes que ninguém nota, mas que ela nunca deixa passar. É impossível não admirar a mulher que ela é. Forte, prática, mas também sensível às necessidades de quem está por perto. As mudanças que tem feito no mercado não são só para reerguer um negócio, mas para tornar o ambiente mais humano, mais justo. Já é tão dedicada aqui, tão incansável... fico imaginando como seria numa família, como ela se entrega, como cuida. E, nesses pensamentos, sinto um misto estranho de tristeza e curiosidade — tristeza por saber que alguém já pode ter essa sorte, essa mulher inteira nas mãos... e curiosidade por imaginar como seria tê-la ao meu lado, em silêncio, sem precisar dizer nada, só sendo quem ela é.

Não sei quando exatamente comecei a olhar pra Verônica com outros olhos. Talvez tenha sido aos poucos, como quem não percebe que está se aproximando do fogo até sentir o calor na pele. O fato é que, com o tempo, ela foi ocupando um espaço silencioso dentro de mim. E quanto mais tento entender o que é isso que sinto, mais me vejo querendo estar perto — não só por admiração, mas por um desejo que não se assume fácil.

É estranho desejar alguém que talvez nem imagine o quanto sua presença me atravessa. E mais estranho ainda é esconder isso todos os dias, disfarçando em olhares rápidos, piadas bobas, ou até num convite inocente pra almoçar. Às vezes, me pergunto se ela percebe. Se sente. Ou se sou só eu, nesse silêncio todo, tentando guardar algo que insiste em transbordar.

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terça-feira, 8 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 38

Por Verônica...

Depois dessa reflexão toda — que, aliás, não costumo permitir nem sozinha —, levantei da cadeira com aquela inquietação boba que nem eu sabia explicar. Precisava fazer algo prático, algo que me trouxesse de volta pro controle. Decidi colocar uma música pra tocar no mercado, quebrar o silêncio metódico que geralmente reina ali, como tudo que eu planejo.

Abri o aplicativo no computador e, sem pensar demais, digitei direto: sertanejo. Sorri sozinha, lembrando da conversa que tive com Clara no meu escritório dias atrás — aquela discussão boba, quase provocativa, sobre música. Ela me acusando de gostar só de cantores mortos e eu tentando manter a pose. Mas o que ficou marcado mesmo foi o jeito como, sem pensar, ela soltou um “Ah, não, Vê... só hoje vai?!”

Foi instintivo, e eu lembro claramente do pânico nos olhos dela logo depois, tentando se desculpar, corrigir, engolir a palavra de volta. E eu ali, parada, absorvendo aquilo com um certo gosto. Vê. Foi tão natural. Quase íntimo.

Voltei ao presente com um leve calor no rosto. Escolhi a pasta com as clássicas, aquelas que ela citou com brilho nos olhos. Assim que a primeira música começou a tocar pelos alto-falantes, fui até a vidraça do meu escritório, aquele ponto estratégico de onde observo tudo sem ser notada.

Foi então que vi.

Clara, no caixa três, sem nem olhar pra cima, apontou a caneta para o ar com aquele gesto espontâneo, meio dançante, como quem diz: "Essa é boa, hein!"

E eu… ri. Um riso curto, sincero, escapando antes que eu conseguisse reprimir. Fazia tempo que algo me arrancava um sorriso assim — leve, desprevenido, sem custo.

Talvez, só talvez… essa história esteja começando a fugir do meu roteiro.


De onde estou, no alto do meu escritório envidraçado, tenho visão de tudo. Aprendi a observar sem ser vista — uma habilidade útil nos negócios… e, ultimamente, um vício silencioso quando se trata de Clara.

Vejo o movimento do caixa três com atenção. Clara está ali, como sempre, ágil, educada, mas tem algo diferente agora. Um rapaz está encostado no balcão. Não reconheço de imediato, talvez cliente novo — ou só mais um daqueles que confundem gentileza com convite.

Ele ri alto, exagerado, como se estivesse contando uma piada genial. E ela… não ri. Sorri com educação, mas tem os ombros tensos. Olha para o lado, brevemente. Tenta escanear os produtos mais rápido, mas ele continua ali, esticando o assunto. Mãos apoiadas demais no balcão. Corpo inclinado. Ar de quem acha que está encantando o mundo.

Sinto algo estranho apertar o peito. Uma mistura de incômodo, irritação… e um impulso que não costumo obedecer.

Levanto sem pensar. Desço as escadas com passos firmes, disfarçando a pressa. Passo pela sessão de pães, viro à esquerda, finjo checar uma prateleira. Quando chego perto, vejo com mais clareza: o desconforto no rosto de Clara é nítido. Ela me vê e, por um segundo, seus olhos brilham diferente. Um alívio contido. Mas nada muda na postura dela — profissional até o fim.

O rapaz ainda fala, agora sobre alguma festa, aparentemente tentando arrancar dela uma reação mais empolgada. Então me aproximo com um sorriso elegante e uma voz firme, mas doce o suficiente para não soar rude.

— Tudo certo por aqui, Clara?

Ela assente com um leve “sim”, mas eu noto o agradecimento escondido no olhar.

Viro então para o rapaz, mantendo o tom cordial:

— Boa tarde! Está encontrando tudo o que precisa na loja?

Ele me encara, desconcertado por um instante. Não esperava ser interrompido — muito menos pela dona do mercado. Sorri, sem graça, e balança a cabeça.

— Sim, sim… só conversando um pouco aqui com ela, né… o atendimento de vocês é ótimo.

— Fico feliz em saber — digo, ainda sorrindo, mas sem recuar um centímetro do meu lugar. Fico ali, ao lado de Clara, imóvel, firme, como um lembrete de que certos limites existem, mesmo quando não são ditos.

Ele pega as sacolas, agradece e finalmente vai embora.

Só então olho para ela de novo. Ela respira fundo, baixa os ombros, e diz num sussurro quase risonho:

— Achei que ele fosse acampar aqui.

Dou uma risada discreta.

— Achei melhor garantir que ele não montasse barraca.

Nossos olhares se encontram por um instante mais longo do que o normal. E eu me pergunto, pela centésima vez, desde quando me tornei alguém que desce pessoalmente para cuidar disso. E por que, com ela, parece que isso sempre vale a pena.


Subo as escadas de volta como quem tenta esconder um tropeço no próprio orgulho. Entro na sala, fecho a porta com calma, mas por dentro… estou longe de estar calma.

Me sento, respiro fundo, e olho para a tela do computador — mas não vejo nada. Meus olhos estão ali, mas minha cabeça ficou no caixa três. No gesto contido de alívio da Clara. No jeito como ela me olhou quando me viu chegando. Não foi só um “obrigada silencioso”. Foi mais. Foi confiança. Foi... entrega.

E isso me desmonta.

Porque eu não desço pro salão. Não “garanto o bem-estar de atendente”. Não me envolvo em situações que podem ser resolvidas com uma câmera de segurança ou um supervisor de turno. Mas com ela… tudo em mim parece contrariar minhas regras.

O que mais me incomoda — ou me assusta — é que eu nem hesitei. Levantei antes de pensar. Agi antes de calcular. E eu sempre calculo.

Sinto meu rosto esquentar só de lembrar da cena. A proximidade. A forma como fiquei ao lado dela, como se fosse algo natural. Como se eu... pertencesse ali.

Ela não disse muito depois. Mas aquele “Achei que ele fosse acampar aqui” me arrancou um sorriso que eu não me permitia há tempos. E minha resposta... até eu achei engraçada. Mas o que ficou mesmo foi o silêncio entre nós depois, aquele segundo de olho no olho em que tudo pareceu mais leve. Quase íntimo.

Agora aqui, sozinha de novo, sinto meu peito estranho. Nem dor, nem euforia. Um incômodo doce, se é que isso existe. Como se algo dentro de mim estivesse mudando de lugar. Lento, mas inevitável.

Talvez não seja só curiosidade. Talvez não seja só carisma. Talvez Clara tenha mesmo entrado — sem pedir licença — num lugar onde ninguém antes teve coragem de tocar.

E o pior é que… eu não quero que ela saia.

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segunda-feira, 7 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 37

Continuação por Verônica...

Preciso manter em sigilo essa ampliação no mercado. Por enquanto, o único concorrente direto neste bairro é o mercado do Valentino — bem organizado, mas com pouca variedade. Minha intenção é crescer, oferecendo mais opções e melhores preços, com qualidade.

Quero que tudo pareça apenas uma reforma comum. Mas, na verdade, estou preparando um movimento estratégico para surpreender meu concorrente. Quando o assunto é concorrência, eu não brinco: quero ser a melhor, a mais forte, a mais criativa.

Queria tanto que meu pai estivesse aqui, vendo de perto cada passo do crescimento desse mercado. Queria que ele visse com os próprios olhos o quanto a união de dois irmãos pode transformar, valorizar e fazer crescer aquilo que ele construiu com tanto esforço e amor.

Me encosto na mesa de frente para vidraça que dá visão ao mercado e, vendo de forma ampla cada movimento, sinto meu corpo se preencher por algo difícil de explicar — talvez seja orgulho, por ter levado a sério cada ensinamento do meu pai. Igor não é diferente. Ele tem o jeito e a área dele. Percebo que está numa fase em que quer se dedicar mais à Lia, e não o critico por isso. Para ser sincero, tenho admiração.

Ao me sentir tão nostálgica, lembro da estrada que percorri para me tornar quem sou hoje. Filha de um pai sonhador. Dois filhos e um único sonho daquele homem: nos passar tudo o que pudesse, como forma de deixar a maior herança. Ele sempre nos ensinou que o mais valioso que deixaria não seria o dinheiro, mas o conhecimento.

Quando dei a notícia de que iria morar fora do Brasil, vi a tristeza nos olhos do meu pai. Mas ele não se opôs. Pelo contrário, me apoiou com a generosidade de quem sempre quis me ver voar, mesmo que longe. Ele sabia que aquilo fazia parte da minha jornada.

Quando abri minha pequena empresa, ele já estava bastante doente. Ainda assim, teve forças para me encorajar a continuar. Me pediu, com aquele jeito firme e amoroso, que eu permanecesse onde estava, focada no meu sonho. E eu segui, mesmo com o coração apertado.

Durante uma viagem a Caldas, recebi a notícia da sua partida. Ali, não perdi apenas um pai. Perdi um exemplo de ser humano, de força, de generosidade. Perdi um empresário inspirador, alguém que acreditava que a maior herança não era feita de bens, mas de princípios, trabalho e caráter.

Ainda hoje, cada passo que dou carrega um pedaço dele. Porque o que ele construiu — dentro e fora de nós — continua vivo.

E com esses pensamentos vou levando o dia. Hoje tenho algumas entrevistas para conduzir. Marquei com um rapaz às dez da manhã, mas até agora nada — o que, sinceramente, já não me surpreende. Aqui em Caldas Novas é assim mesmo: abre-se uma vaga, muitos se candidatam, mas poucos realmente aparecem.

Às quatorze horas tenho outra entrevista agendada, mas, pela primeira vez, confesso que torço para que o candidato não venha... Só para eu poder chamar a Clara para almoçar comigo. E ela, claro, não seria nem louca de recusar.

Clara tem sido meu respiro nos dias mais intensos. Com aquele jeito leve e uma risada que preenche os silêncios, ela me lembra que, mesmo em meio à rotina puxada e às responsabilidades, ainda há espaço para pausas, para conversas simples e para o afeto que a gente às vezes esquece de cultivar. Almoçar com ela seria como dar um pequeno presente ao meu dia — e eu ando precisando desses pequenos presentes.

Ainda bem que, quando propus que ela se afastasse, caso sentisse necessidade, Clara me olhou com firmeza e, com poucas palavras, disse que não queria ir embora. Só precisava de segurança — um chão firme — para continuar com nossos pequenos eventos. E eu entendi. Aquela menina… eu não sei explicar, mas a risada dela, as frases cheias de humor e espontaneidade, têm um poder estranho sobre mim. Me tiram de uma versão cansada, sobrecarregada, e me colocam de volta numa versão mais leve, mais viva. É como se, ao lado dela, tudo ficasse um pouco mais simples.

Eu preciso admitir a presença dela me desmonta mesmo eu me construindo para ser a mulher inabalável que acredito ser. Ela me faz rir de maneira fácil, quando eu me construir para não me deixar levar por coisas bobas, ela me faz ser quem eu treinei anos para não ser.

Eu preciso admitir: a presença dela me desmonta. E isso, mesmo depois de tantos anos me moldando para ser a mulher inabalável que acredito ser. Clara me faz rir com uma facilidade que me assusta. Eu, que me treinei para não me deixar levar por coisas bobas, que endureci o peito para não perder o foco… me vejo sendo exatamente aquilo que passei anos tentando controlar. Ela me desarma com gestos simples, me mostra que leveza também é força — e que não há fraqueza nenhuma em sentir.

Não conheço muito bem a Clara, mas já ouvi dizer que ela teve um relacionamento relativamente duradouro com outra mulher. Confesso que fico curioso para entender o que levou ao término. Será que, em outros ambientes, a Clara continua sendo a mesma pessoa? Ou será que ela muda, se adapta, talvez até esconda partes de si?

Não sei ao certo de onde vem essa curiosidade — ou preocupação — em querer conhecê-la melhor. Talvez seja apenas um sentimento confuso, ou talvez eu só esteja tentando entender algo nela que, de alguma forma, ressoa em mim.

Relacionamentos nunca foram pra mim. E não, não é papo de quem se feriu e agora finge que é mais forte. Eu simplesmente não vejo sentido. Já vi gente demais se perder tentando amar — perder o foco, o controle, a dignidade. Eu não. Sempre tive um compromisso maior: comigo mesma.

Sou egocêntrica, dizem. Calculista. Talvez. Mas nunca pedi pra agradar ninguém. Aprendi cedo que o mundo não é gentil com quem hesita, e eu jamais hesitei. Construir meu negócio do zero, derrubei muros, engoli desaforos, e hoje quem me olha com desdém... bom, geralmente está abaixo de mim na hierarquia.

Não gosto de me apegar. Compromisso, pra mim, é uma palavra que combina com metas, contratos, entregas no prazo — não com promessas vazias ou mãos dadas no fim do dia. Prefiro a solidão da minha rotina à bagunça emocional que vejo por aí.

Mas então… tem Clara.

A caixa desse supermercado. Nem sei quando comecei a notar. Ela está ali quase todos os dias — sorriso calmo, postura leve, parece alheia ao caos que ronda esse lugar. Por algum motivo ridículo, eu comecei a observá-la mais do que gostaria. E o pior: comecei a me perguntar coisas que nunca me permiti antes.

Não faz sentido. Ela é simples. Eu sou complexa — ou pelo menos gosto de pensar que sou. Mas, às vezes, quando passo por ela e ela me olha nos olhos... parece que algo em mim desarma. E isso, honestamente, me irrita. Me tira do controle. Me faz sentir... humana demais.

Eu não sei o que está acontecendo. Só sei que, pela primeira vez, minhas certezas estão começando a tremer. E talvez, só talvez, eu esteja começando a ver Clara com outros olhos.

E isso me assusta. Mas também... me intriga.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...