segunda-feira, 7 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 37

Continuação por Verônica...

Preciso manter em sigilo essa ampliação no mercado. Por enquanto, o único concorrente direto neste bairro é o mercado do Valentino — bem organizado, mas com pouca variedade. Minha intenção é crescer, oferecendo mais opções e melhores preços, com qualidade.

Quero que tudo pareça apenas uma reforma comum. Mas, na verdade, estou preparando um movimento estratégico para surpreender meu concorrente. Quando o assunto é concorrência, eu não brinco: quero ser a melhor, a mais forte, a mais criativa.

Queria tanto que meu pai estivesse aqui, vendo de perto cada passo do crescimento desse mercado. Queria que ele visse com os próprios olhos o quanto a união de dois irmãos pode transformar, valorizar e fazer crescer aquilo que ele construiu com tanto esforço e amor.

Me encosto na mesa de frente para vidraça que dá visão ao mercado e, vendo de forma ampla cada movimento, sinto meu corpo se preencher por algo difícil de explicar — talvez seja orgulho, por ter levado a sério cada ensinamento do meu pai. Igor não é diferente. Ele tem o jeito e a área dele. Percebo que está numa fase em que quer se dedicar mais à Lia, e não o critico por isso. Para ser sincero, tenho admiração.

Ao me sentir tão nostálgica, lembro da estrada que percorri para me tornar quem sou hoje. Filha de um pai sonhador. Dois filhos e um único sonho daquele homem: nos passar tudo o que pudesse, como forma de deixar a maior herança. Ele sempre nos ensinou que o mais valioso que deixaria não seria o dinheiro, mas o conhecimento.

Quando dei a notícia de que iria morar fora do Brasil, vi a tristeza nos olhos do meu pai. Mas ele não se opôs. Pelo contrário, me apoiou com a generosidade de quem sempre quis me ver voar, mesmo que longe. Ele sabia que aquilo fazia parte da minha jornada.

Quando abri minha pequena empresa, ele já estava bastante doente. Ainda assim, teve forças para me encorajar a continuar. Me pediu, com aquele jeito firme e amoroso, que eu permanecesse onde estava, focada no meu sonho. E eu segui, mesmo com o coração apertado.

Durante uma viagem a Caldas, recebi a notícia da sua partida. Ali, não perdi apenas um pai. Perdi um exemplo de ser humano, de força, de generosidade. Perdi um empresário inspirador, alguém que acreditava que a maior herança não era feita de bens, mas de princípios, trabalho e caráter.

Ainda hoje, cada passo que dou carrega um pedaço dele. Porque o que ele construiu — dentro e fora de nós — continua vivo.

E com esses pensamentos vou levando o dia. Hoje tenho algumas entrevistas para conduzir. Marquei com um rapaz às dez da manhã, mas até agora nada — o que, sinceramente, já não me surpreende. Aqui em Caldas Novas é assim mesmo: abre-se uma vaga, muitos se candidatam, mas poucos realmente aparecem.

Às quatorze horas tenho outra entrevista agendada, mas, pela primeira vez, confesso que torço para que o candidato não venha... Só para eu poder chamar a Clara para almoçar comigo. E ela, claro, não seria nem louca de recusar.

Clara tem sido meu respiro nos dias mais intensos. Com aquele jeito leve e uma risada que preenche os silêncios, ela me lembra que, mesmo em meio à rotina puxada e às responsabilidades, ainda há espaço para pausas, para conversas simples e para o afeto que a gente às vezes esquece de cultivar. Almoçar com ela seria como dar um pequeno presente ao meu dia — e eu ando precisando desses pequenos presentes.

Ainda bem que, quando propus que ela se afastasse, caso sentisse necessidade, Clara me olhou com firmeza e, com poucas palavras, disse que não queria ir embora. Só precisava de segurança — um chão firme — para continuar com nossos pequenos eventos. E eu entendi. Aquela menina… eu não sei explicar, mas a risada dela, as frases cheias de humor e espontaneidade, têm um poder estranho sobre mim. Me tiram de uma versão cansada, sobrecarregada, e me colocam de volta numa versão mais leve, mais viva. É como se, ao lado dela, tudo ficasse um pouco mais simples.

Eu preciso admitir a presença dela me desmonta mesmo eu me construindo para ser a mulher inabalável que acredito ser. Ela me faz rir de maneira fácil, quando eu me construir para não me deixar levar por coisas bobas, ela me faz ser quem eu treinei anos para não ser.

Eu preciso admitir: a presença dela me desmonta. E isso, mesmo depois de tantos anos me moldando para ser a mulher inabalável que acredito ser. Clara me faz rir com uma facilidade que me assusta. Eu, que me treinei para não me deixar levar por coisas bobas, que endureci o peito para não perder o foco… me vejo sendo exatamente aquilo que passei anos tentando controlar. Ela me desarma com gestos simples, me mostra que leveza também é força — e que não há fraqueza nenhuma em sentir.

Não conheço muito bem a Clara, mas já ouvi dizer que ela teve um relacionamento relativamente duradouro com outra mulher. Confesso que fico curioso para entender o que levou ao término. Será que, em outros ambientes, a Clara continua sendo a mesma pessoa? Ou será que ela muda, se adapta, talvez até esconda partes de si?

Não sei ao certo de onde vem essa curiosidade — ou preocupação — em querer conhecê-la melhor. Talvez seja apenas um sentimento confuso, ou talvez eu só esteja tentando entender algo nela que, de alguma forma, ressoa em mim.

Relacionamentos nunca foram pra mim. E não, não é papo de quem se feriu e agora finge que é mais forte. Eu simplesmente não vejo sentido. Já vi gente demais se perder tentando amar — perder o foco, o controle, a dignidade. Eu não. Sempre tive um compromisso maior: comigo mesma.

Sou egocêntrica, dizem. Calculista. Talvez. Mas nunca pedi pra agradar ninguém. Aprendi cedo que o mundo não é gentil com quem hesita, e eu jamais hesitei. Construir meu negócio do zero, derrubei muros, engoli desaforos, e hoje quem me olha com desdém... bom, geralmente está abaixo de mim na hierarquia.

Não gosto de me apegar. Compromisso, pra mim, é uma palavra que combina com metas, contratos, entregas no prazo — não com promessas vazias ou mãos dadas no fim do dia. Prefiro a solidão da minha rotina à bagunça emocional que vejo por aí.

Mas então… tem Clara.

A caixa desse supermercado. Nem sei quando comecei a notar. Ela está ali quase todos os dias — sorriso calmo, postura leve, parece alheia ao caos que ronda esse lugar. Por algum motivo ridículo, eu comecei a observá-la mais do que gostaria. E o pior: comecei a me perguntar coisas que nunca me permiti antes.

Não faz sentido. Ela é simples. Eu sou complexa — ou pelo menos gosto de pensar que sou. Mas, às vezes, quando passo por ela e ela me olha nos olhos... parece que algo em mim desarma. E isso, honestamente, me irrita. Me tira do controle. Me faz sentir... humana demais.

Eu não sei o que está acontecendo. Só sei que, pela primeira vez, minhas certezas estão começando a tremer. E talvez, só talvez, eu esteja começando a ver Clara com outros olhos.

E isso me assusta. Mas também... me intriga.

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sábado, 5 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 36

Por Verônica...

Ao voltar minha atenção ao computador, vejo pelas câmeras Clara e Augusto conversando no caixa. Mas algo naquela cena me prende por mais tempo do que deveria. Não é só a proximidade — é o jeito como falam. Os gestos meio ríspidos, os olhos mais intensos do que o normal. Há tensão ali.

Eles parecem alterados, mas me forço a acreditar que seja só isso — orientações, talvez. Augusto tem esse jeito bruto mesmo, às vezes. E Clara… bom, Clara costuma segurar bem as pontas.

Mesmo assim, algo no meu estômago se contrai. Uma intuição incômoda, como se eu estivesse vendo só a ponta de um iceberg que preferia não descobrir o que esconde.

Tento não dar atenção. Viro o rosto, continuo oque estava fazendo. Mas a cena insiste em ficar comigo. Talvez porque, por mais que eu diga pra mim mesma que não tem nada, no fundo… eu já não tenho tanta certeza assim. Sair para pedir a explicação do Augusto em alguma mercadoria que não havia chegado, e depois voltei a meu escritório.

Voltei para minha sala, algo dentro de mim não sossegava. A possível conversa entre Clara e Augusto ainda rondava meus pensamentos. Não gosto de tirar conclusões precipitadas — não posso. Mas também não sou cega. Conheço o tom de voz de Augusto quando ele está dando orientação... e o de quando está pressionando alguém.

Passei a mão pelos papéis na mesa, tentando me concentrar, quando ouvi o motor de uma caminhonete estacionando. Levantei e fui até a porta para espiar. Um homem desceu, segurando uma prancheta e um capacete. Logo me veio à mente: o construtor. O projeto do açougue.

Respirei fundo. Uma parte de mim queria voltar a lidar com a tensão entre Clara e Augusto, mas a outra — a parte prática, que move esse mercado — sabia que havia coisas mais urgentes a resolver. Pelo menos por agora.

Fui até a porta de entrada.

— Bom dia — ele disse, simpático. — Sou o Raul. Vim conversar sobre a reforma e o início da construção do açougue.

— Claro, Raul. Bem-vindo — respondi, oferecendo um sorriso profissional. — Pode entrar, por favor. A gente conversa melhor lá dentro.

Enquanto caminhávamos, notei o olhar de Clara cruzando com o meu. Foi rápido. Atento. O suficiente para me lembrar de que ela percebe mais do que fala. Isso, por si só, já é algo a se observar.

Mas agora era hora de falar de cimento, prazos e plantas. Só que, mesmo com o barulho das ferramentas chegando, a pulga atrás da minha orelha ainda não tinha ido embora.

E eu nunca ignorei uma intuição minha.

Raul guardou a trena no coldre da cintura e passou a mão pela testa, enxugando o suor discreto. Tinha percorrido cada canto do mercado com olhar clínico, anotando tudo com precisão. Medidas, esquinas, reforços necessários. Era bom no que fazia — e rápido.

Fechei a porta do escritório atrás de nós, sentindo um alívio quase físico de estar de volta ao ar-condicionado. Raul se acomodou na cadeira à frente da mesa, desenrolando os papéis com a planta do novo açougue.

— A estrutura tá boa, Verônica. Dá pra trabalhar tranquilo aqui. Vai precisar só de reforço nas vigas da parede dos fundos, mas nada que complique o prazo — ele disse, marcando algo na folha com o dedo. — E se a senhora quiser, dá até pra integrar um pequeno balcão de atendimento direto pro salão.

Assenti, analisando cada linha com atenção.

— E o orçamento?

Ele virou a prancheta na minha direção, revelando os valores estimados, mão de obra, tempo previsto, tudo milimetricamente organizado.

— Aqui tá tudo detalhado. Como falamos antes, dá pra parcelar em três etapas, conforme a obra for avançando. E com o fornecedor que tenho, a gente consegue o material com desconto à vista — completou, me lançando um olhar de quem entende que tudo tem que caber no bolso também.

Peguei uma caneta e comecei a fazer algumas anotações ao lado.

— Pode me enviar isso por e-mail também? Assim eu deixo registrado com o contador.

— Mando ainda hoje — garantiu, já recolhendo os papéis.

Ficamos alguns segundos em silêncio. Eu olhei para ele, depois para a porta fechada. A movimentação do mercado seguia do lado de fora, abafada, como um mundo paralelo que eu comandava de dentro daquela sala.

— Raul — chamei, antes que ele se levantasse. — Discrição é importante pra mim. Essa reforma tem que ser tranquila. Sem bagunça, sem gente de fora demais, sem virar assunto entre os funcionários.

Ele assentiu, firme.

— Pode deixar. Comigo, serviço é no sigilo e no prazo.

— Ótimo — respondi, me levantando também. Estendi a mão para ele. — Negócio fechado, então.

Ele apertou minha mão com segurança.

— Fechado. Segunda-feira a gente começa.

Quando ele saiu, fiquei por um momento parada diante da mesa. O mercado estava prestes a mudar — fisicamente, sim, mas havia algo mais. Um novo ritmo, novas presenças, novos olhares.

E no meio disso tudo... pessoas que já estavam ali, mas que talvez eu estivesse começando a ver sob uma nova luz.

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O acaso a meu favor - Página 35

 Por Clara...

Quando Verônica passou por mim hoje, me cumprimentando, meu corpo reagiu de um jeito estranho. Por algum motivo, vê-la ali me trouxe uma sensação boa, quase um alívio. Mas, logo em seguida, me lembrei das palavras da Juliana. Na hora, me contive ao máximo e tentei me ocupar com qualquer coisa, só para evitar passar na frente daquele escritório.

Esse era o meu plano de agora em diante. Só que, quando comecei a achar que ele daria certo, Verônica mandou me chamar. Queria que eu fosse até o escritório. Naquele momento, meu corpo gelou.

Será que ela ficou sabendo dos comentários? Será que está achando que fui eu quem espalhou? Será que vai me ameaçar, dizendo que, se eu não me calar, posso ser mandado embora? Que posso acabar prejudicado no mercado?

São tantas perguntas, tantos medos misturados...

Eu só percebi que estava segurando uma flanela quando já estava de pé na frente do escritório. Era como se minha mente precisasse se agarrar a algo conhecido, algo concreto, pra não se perder na ansiedade.

Entrei esperando o pior. Depois dos comentários, das insinuações, da tensão no ar... não podia ser algo bom. Mas, conforme Verônica foi falando, as palavras não vieram como acusação, e sim como reconhecimento. E, por mais que eu tentasse resistir, aquilo me desmontou.

Senti meu corpo ceder, os ombros relaxarem, a tensão me abandonar aos poucos. E isso me fez pensar: por que a presença dela me afeta tanto? Por que o que ela diz tem esse peso sobre mim? Não é normal eu reagir assim.

A verdade é que estou começando a sentir algo que vai além da admiração profissional. É respeito, sim. É gratidão, também. Mas tem uma curiosidade, um brilho nos olhos quando ela entra na sala. Uma vontade de agradar, de ser notada — não pela chefia, mas por ela.

E isso me assusta. Porque não sei onde isso vai dar, nem se é recíproco, nem se é certo sentir isso dentro do ambiente em que estou. Mas o que sei é que, toda vez que ela fala comigo daquele jeito... eu esqueço, por um momento, de todos os riscos.

Saí da sala um pouco atordoada pelos sentimentos, mas aliviada por saber que ela não pensava o pior de mim. Meus passos ainda estavam leves demais para alguém que achava que sairia dali em apuros. Voltei para o caixa tentando retomar o foco, mas dei de cara com Augusto — e sua expressão fechada.

Assim que me viu, ele não perdeu tempo:

— Até que enfim, né? O que você aprontou pra levar um esporro tão demorado? — disse, já contornando o caixa para sair.

— Eu não tenho tempo pra ficar fazendo serviço dos outros, não! — reclamou, passando por mim sem nem me olhar direito.

Respirei fundo, tentando manter a calma. Então, soltei:

— Então, meu amigo... — ele já virava o corpo na minha direção, curioso.

— Cê reclama com ela.

Augusto parou por um segundo, me olhando como se não tivesse certeza se tinha ouvido direito.

— Como é que é? — ele perguntou, com um sorriso irônico que não chegava nos olhos. — Agora você tá mandando em quem eu devo reclamar?

— Não tô mandando em nada, Augusto — respondi, firme. — Só tô dizendo que se tá incomodado com o tempo que eu demorei, resolve com quem me chamou. Porque foi ela quem pediu pra eu ir.

— E você foi, né? Correndo. Igual um cachorrinho atrás de ossinho — ele cuspiu as palavras, carregadas de veneno. — Impressionante.

Fiquei em silêncio por um momento. O tipo de silêncio que corta mais do que grito. Ele sabia que tinha passado dos limites — e ainda assim, parecia satisfeito por isso.

— Você tá com algum problema comigo, é isso? — perguntei, encarando ele de frente.

— Não. Meu problema é com gente que esquece onde tá pisando — ele respondeu. — Com gente que acha que pode se escorar nos outros e depois posar de inocente.

— Engraçado… — respondi, cruzando os braços. — Porque, até onde eu sei, eu sempre fiz minha parte. E mais um pouco. Se alguém aqui anda se escorando, não sou eu.

Ele riu de canto, mas já não tinha resposta. Ficou apenas me encarando, como se estivesse tentando decidir se valia a pena continuar o embate ou não.

— Quer saber? — ele disse por fim, dando meia-volta. — Fica aí com tua chefe protetora.

E saiu.

Eu respirei fundo, tentando não deixar que aquilo me afetasse mais do que já tinha afetado. Mas era difícil. Porque, por trás da raiva dele, tinha algo mais. Inveja? Ciúme? Medo? Eu ainda não sabia. Mas sabia que aquela história estava longe de acabar.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...