Depois de passar um pouco de raiva com os repositores — porque, convenhamos, homem quando resolve ser desajeitado consegue ultrapassar todos os limites da paciência —, finalmente conseguimos colocar tudo em ordem.
Ligamos os freezers, e lá ficaram, ronronando como motores satisfeitos, adquirindo a temperatura ideal para receber as carnes que ainda repousavam na câmera fria.
Respirei fundo, sentindo aquele peso nos ombros se dissolver pouco a pouco. O mercado estava, de fato, começando a ganhar um novo fôlego.
Olhei em volta, vi a equipe cansada, e fiz o que achava justo:
— Os que saíram mais cedo do intervalo por ordem minha, descansem por trinta minutos agora. Os demais, que ainda não pararam, façam isso também.
Todos assentiram, sem contestar. E o silêncio que ficou foi quase reconfortante.
Peguei o celular para ver as horas e me assustei: 15h47.
A correria tinha engolido meu dia, e percebi que não havia colocado nada no estômago desde cedo.
A fome, que antes havia desaparecido na empolgação da chegada dos freezers, voltou com força na calmaria que se seguiu.
Era como se meu corpo, agora que já não estava em alerta, cobrasse a conta da adrenalina.
Olhei em volta: papéis pela mesa, planilhas abertas no computador, meu celular cheio de mensagens não lidas. Parte de mim queria continuar ali, resolvendo cada detalhe do dia, mas a outra gritava por um simples prato de comida.
Suspirei, ajeitando os óculos no rosto, e pensei: Não adianta nada segurar o peso de uma empresa inteira se eu não consigo cuidar nem de mim mesma.
Abri o aplicativo de delivery e comecei a rolar as opções. Nada parecia apetitoso. Tudo me parecia ou muito pesado ou muito demorado. Fechei de novo. Peguei a bolsa.
— Vou sair só um instante. — anunciei, quase para mim mesma, mas alto o suficiente para Augusto, que passava pelo corredor, escutar.
Ele me lançou aquele olhar de quem quer perguntar “Quer que eu vá junto?”, mas se conteve. E ainda bem, porque eu precisava de alguns minutos sozinha.
No carro, o silêncio me fez bem. Liguei o rádio baixo, apenas para não ouvir o som do meu próprio estômago roncando, e segui em direção a uma lanchonete simples que ficava a duas quadras dali. Não era nada sofisticado, mas serviam um prato feito honesto, quente, e era isso que eu precisava.
Enquanto esperava o pedido, abri novamente as fotos dos freezers no celular. Sorri sozinha.
Cansada, esfomeada, estressada — mas feliz.
Afinal, cada conquista tem gosto melhor quando a gente paga o preço para alcançá-la.
Não demorou nem quinze minutos e meu pedido chegou, e meu estômago agradeceu como se tivesse recebido o presente mais valioso do mundo. A cada garfada eu sentia minhas forças voltarem, como se um fio invisível estivesse religando minha energia. Mas, se eu pudesse escolher, naquele exato momento trocaria qualquer freezer novo por um travesseiro e aquele cochilo sagrado depois do almoço.
Sorri sozinha diante do pensamento. Mas como nasci bonita e ainda tento não falir a própria empresa da minha família, levantei da cadeira com uma falsa elegância, paguei a comanda e segui de volta ao supermercado.
No carro, o calor da tarde batia no vidro, e por um instante quase me convenci a dar mais cinco minutinhos estacionada ali, com os olhos fechados. Mas não. O mercado precisava de mim, e a sensação de responsabilidade sempre gritou mais alto do que meu cansaço.
Quando voltei, encontrei alguns dos meninos rindo baixinho perto da entrada. Ao me ver, todos se recompuseram rápido — era engraçado e ao mesmo tempo satisfatório ver como minha presença ainda impunha ordem. Passei por eles sem dizer nada, mas por dentro estava com vontade de rir.
Seguir direto para o escritório, mas antes de sentar, fui até os freezers. Ali estavam, alinhados, imponentes, como soldados prontos para a batalha. Toquei a lateral de um deles, fria, firme. Senti aquele orgulho crescer de novo no peito.
— Augusto, amanhã pela manhã quero todas as carnes embaladas a vácuo nesses freezers. — ordenei, firme, cruzando os braços enquanto olhava para o brilho novo dos equipamentos.
Ele ergueu as sobrancelhas, respirou fundo, como quem já estava se preparando para a correria que viria, mas apenas assentiu com a cabeça.
— Pode deixar, Verônica. — respondeu sem titubear, ainda que eu tenha percebido o peso da responsabilidade na sua voz.
Caminhei lentamente em volta dos freezers, como se estivesse inspecionando uma obra de arte recém-inaugurada. Não eram apenas caixas de aço refrigerado. Para mim, representavam muito mais: investimento, risco, futuro.
E não deixei de pensar no tanto que sangrei o caixa para vê-los ali, alinhados.
Me virei para os meninos que estavam próximos.
— E quero todo mundo ajudando. Isso aqui não é trabalho de um só, é da equipe inteira. — falei em tom que não deixava espaço para dúvidas.
Eles se entreolharam, sérios. Era isso que eu queria ver: respeito, disciplina. Porque freezer cheio de carne, organizado, bonito, não era apenas estética — era lucro, era sobrevivência da empresa.
Quando terminei, senti aquele peso bom de dever cumprido pelo menos por hoje. Só que ao mesmo tempo, dentro de mim, uma voz insistia: Verônica, amanhã começa a parte difícil de verdade.
Se depender de mim, essa empresa vai florescer. Nem que eu tenha que engolir o mundo a cada garfada, entre um cochilo negado e outro.
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