Pagina 16 – Capitulo 02.
Por
Verônica...
A semana
passa de maneira lenta, quase arrastada, mas não sem propósito. A cada dia,
vejo pequenas mudanças ganhando forma: as prateleiras mais organizadas, os
funcionários mais atentos, o ambiente mais limpo e convidativo. O mercado,
antes desleixado e sem identidade, agora começa a se moldar conforme minha
visão. Aos poucos, vai se tornando um lugar mais confortável, mais atraente ao
olhar de quem compra — e isso, mesmo que discretamente, vai me preenchendo. Um
tipo de realização silenciosa, mas poderosa.
Sempre
atenta a tudo e todos, percebo que Clara chegou mais desanimada que o normal
nos últimos dias. O brilho discreto que ela carregava no olhar parecia ofuscado
por um cansaço silencioso. Não que seja da minha conta a vida pessoal dela —
mantenho isso claro para mim mesma —, porém, por algum motivo, aquilo me
incomodou. Será que ainda está se desgastando no turno contrário naquele
restaurante? Ou seria outro peso que carrega nos ombros? Tento afastar essas
perguntas da minha cabeça, rejeitar a curiosidade crescente... pelo menos, é o
que tento.
Por algum
instinto, me pego observando mais atentamente os corredores em que Clara está.
Ela parece determinada, quase teimosa, tentando criar uma nova forma de
organização nas prateleiras — mas, ao que tudo indica, sem muito sucesso. Há um
leve desalinho, uma tentativa de lógica que não conversa com o espaço. Com um
sorriso silencioso, balanço a cabeça em negação, como quem assiste uma criança
montar um castelo de cartas na beirada da mesa. Tem esforço, tem boa
intenção... mas falta direção.
Respiro
fundo e, mesmo contrariando meu próprio orgulho, caminho até ela com passos
calmos. Clara percebe minha aproximação e rapidamente tenta parecer ocupada,
como se não quisesse parecer perdida. Me abaixo ao lado dela, analiso
brevemente o que ela vinha tentando fazer e, com um tom menos rígido do que o
de costume, comento:
— A ideia
é boa, só está faltando um pouquinho de lógica no fluxo. Posso te mostrar um
jeito que costuma funcionar melhor?
Ela me
olha com certo receio, talvez surpresa com minha disposição em ajudar, mas
assente com um leve movimento de cabeça. Sem mais, começo a reorganizar os
produtos com ela, explicando o porquê de cada mudança. E, pela primeira vez,
sinto que a distância entre nós diminui um pouco.
Clara
prestava atenção com os olhos atentos, absorvendo cada palavra que eu dizia,
gesticulando com precisão ao mostrar como os produtos deviam ser dispostos por
categoria e altura de acesso. No entanto, ao tentar alcançar uma caixa no topo
da prateleira para ilustrar seu ponto, com um passo mal calculado para trás —
bem na direção de uma caixa de papelão vazia que Clara havia deixado ali sem
perceber.
— Cuidado
aí com... — Ouvir Clara tentar alertar, mas foi tarde demais.
Eu
escorreguei, e no reflexo, tentei se segurar no ombro de Clara, que por
instinto, segurou a prateleira ao lado. O problema foi que a prateleira não
estava tão bem presa assim. Nós duas fomos parar no chão como uma cena em
câmera lenta: Clara tropeçando junto, eu ainda tentando manter a postura, e
ambas caindo entre caixas de sucrilhos, pacotes de bolacha e um saco de arroz
que, ao se romper, espalhou grãos por todos os lados como confete.
— Meu
Deus do céu — disse sentada no chão, com flocos de milho grudados no cabelo e
um pacote amassado de biscoito sob o braço.
Clara,
deitada de costas, soltou uma gargalhada que não conseguiu conter.
— A parte
boa é que agora sabemos o que não fazer numa reorganização! — disse ela, rindo
enquanto tirava um floco de sucrilho da blusa.
Eu, por
um instante, esqueci do cargo, da rigidez e da postura — e ri junto. Uma risada
sincera, alta, que ecoou entre os corredores. Foi o tipo de desastre cômico
que, sem querer, ajudou a quebrar uma muralha invisível entre nós duas.
Aos
poucos, a risada de Clara foi se acalmando quando notou que eu ainda permanecia
sentada no chão, massageando o pulso com uma expressão entre a surpresa e o
desconforto.
— Ei…
você tá bem? — Clara perguntou, já se levantando rapidamente e indo até a mim,
com o semblante mais sério agora. — Machucou alguma coisa?
Soltou
um suspiro e tentou minimizar com um meio sorriso.
— Só meu
orgulho, eu acho… e talvez meu cóccix — murmurou, fazendo Clara soltar uma
risadinha contida enquanto lhe estendia a mão.
— Vem,
levanta. Vai acabar atraindo mais sucrilhos do que atenção, sentada aí.
Aceitei
sua ajuda com um olhar divertido, mas surpreso com a firmeza de Clara ao me
puxar de volta para ficar em pé.
— Você é
mais forte do que parece — comento ajeitando a roupa e sacudindo o restante dos
flocos grudados nos ombros.
— E você
é mais desastrada do que parece — devolveu Clara com um sorriso cúmplice.
Por um
segundo, ficamos ali em pé, lado a lado no meio da bagunça, encarando os
produtos espalhados pelo chão.
— Ok…
talvez a gente precise de um plano B pra esse corredor. — disse olhando o
rastro de caos.
— Ou uma
maneira segura de arrumar os produtos. — respondeu Clara, e nós duas, dessa vez
mais controladas, voltamos a rir.
Entre
risadas e olhares divertidos trocados no caminho, seguimos para a cozinha —
Clara com passos rápidos em busca de uma vassoura e eu tentando, com dignidade,
tirar o que parecia ser uma casquinha de cereal grudada no meu cabelo.
— Se eu
achar leite aqui no meio, eu juro que te demito — brinquei, tentando desenrolar
uma mecha sem sucesso.
Clara
soltou uma risada alta ao abrir o armário da faxina.
— Relaxa,
senhora Verônica, hoje o cardápio foi só crocância mesmo — disse com aquele tom
sarcástico habitual, colocando um pano no ombro.
— Aí, lá
vem de novo o “senhora” — revirei os olhos, ainda rindo. — Você só usa isso
quando quer me provocar.
— E pelo
visto funciona muito bem — ela respondeu por cima do ombro, já voltando com a
vassoura na mão, com um sorriso de canto no rosto que me fez rir sozinha mais
uma vez.
A cena
toda, apesar do caos, tinha uma leveza incomum. Algo que há muito tempo eu não
sentia entre paredes de um ambiente de trabalho.
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