Pagina 15 – Capitulo 02.
Por Clara...
Nem acredito que estou em casa tão cedo assim. O silêncio da casa me
abraça de um jeito gostoso, diferente da correria barulhenta do mercado. Ao
entrar, dou de cara com o Bento, largado no sofá, dormindo de boca aberta como
se tivesse passado o dia inteiro trabalhando. Aproveito o momento, pego o
celular e tiro uma foto — dessas que a gente guarda só pra rir depois.
Chego mais perto e faço um carinho leve na sua barriguinha, com cuidado
pra não assustá-lo. Ele abre os olhos devagar, percebe que sou eu e logo se
espreguiça antes de pular para o meu colo, ronronando. Troco a água, limpo sua
caixinha de areia e, como sempre, ele se esfrega nas minhas pernas em sinal de
agradecimento. O pego de novo no colo e dou um beijo no pescocinho peludo. Em
dias raros como esse, ele deixa — e hoje, pra minha surpresa, foi um desses
dias.
Hoje foi um daqueles dias em que tudo o que eu queria era um prato feito
por mim, com calma, com afeto. Sem pressa. Separei os ingredientes e organizei
tudo sobre a pia — legumes frescos, arroz, temperos. Prendi o cabelo em um
coque frouxo, deixando algumas mechas onduladas caírem naturalmente ao redor do
rosto. Comecei cortando os legumes, depois fui para o arroz, cebola, alho… aos
poucos, a cozinha se encheu de aromas que aquecem o coração. Um jantar simples,
saudável, mas cheio de significado — como se cada corte e cada mistura fossem
um jeito de cuidar de mim.
Ao perceber algumas cervejas esquecidas na geladeira, não resisti — abri
uma, senti o estalo da tampinha, e fui saboreando aos poucos enquanto as tiras
de carne douravam na frigideira, chegando ao ponto exato que gosto. O cheiro
era convidativo, e com a garrafinha na mão, comecei a montar a pequena mesa da
minha sacada. Coloquei os pratos, os talheres e fui ajeitando tudo com calma. A
vista, o clima ameno da noite e o som leve da cidade ao fundo tornavam aquele
momento ainda mais especial. Aos poucos, fui gostando do que via — da mesa, da
comida… e de mim ali, em paz.
Faz
poucos meses que terminei um relacionamento onde investi tudo de mim. Planejei
uma vida inteira ao lado de alguém que, no fim, não soube valorizar nem metade
do que ofereci. Sonhei, me entreguei, construí castelos onde só havia areia.
Fiz tudo o que alguém faz quando deseja verdadeiramente dividir a vida com
outra pessoa. Agora, com o jantar pronto e o cheiro bom tomando conta do
ambiente, começo a montar meu prato. Bento, como sempre, se enrosca nas minhas
pernas, pedindo com os olhos aquele pedacinho de carne que ele sabe que vai
ganhar — e, claro, ganha. Porque, no fim, ele nunca me decepciona.
Enquanto
saboreava cada garfada com calma, observando os carros e pessoas apressadas na
avenida lá embaixo, minha mente vagava por memórias que ainda ardiam. Refletia
sobre minha vida, sobre os caminhos que escolhi e, principalmente, onde foi que
errei. Me perguntava se deixei escapar sinais de que aquela relação não era tão
sólida quanto imaginei. Se em algum momento hesitei, ou se fui cega demais para
ver que não éramos mais as mesmas. As palavras daquele último dia ainda ecoavam
dentro de mim — duras, injustas, mas inevitáveis. Ao terminar o prato, levei à
pia e deixei a louça para depois. No mesmo embalo, fui até a geladeira, peguei
mais uma cerveja e voltei à sacada, disposta a brindar, nem que fosse à minha
própria solidão.
Bento,
como se entendesse meu silêncio carregado, salta com leveza para a cadeira ao
lado e se acomoda como um verdadeiro guardião da minha solidão. Dou uma risada
baixa, abafada, só pelo jeito dele se espichar todo, dono de si. Volto então
para dentro de mim, me sabotando mais uma vez. Procurando falhas, detalhes,
gestos mal interpretados — qualquer coisa que justificasse o fim. Mesmo sabendo
que essa busca não levaria a lugar nenhum além da dor, pego o celular como quem
pega uma esperança velha, e digito mais uma mensagem. Mais uma tentativa. Mais
uma que provavelmente vai ficar no vácuo junto com todas as outras. E mesmo
assim, eu envio.
Lágrimas
escorrem sem aviso, quentes, silenciosas, como se meu corpo soubesse antes de
mim o peso que eu carrego. Me pergunto até quando essa angústia vai durar. Até
quando esse buraco no peito vai se fazer presente, esse medo sufocante de nunca
ser o bastante. Medo de não ser suficiente pra alguém. Medo de não ser amada de
forma inteira. De nunca construir aquilo que sempre desejei com mais força do
que coragem: uma família. Uma casa onde eu não precise me perguntar se estou
sendo demais ou de menos. Onde eu possa apenas existir, e ainda assim ser
escolhida todos os dias.
Ao perceber o quão tarde está ficando, me levanto devagar, ainda sentindo o peso dos pensamentos, e começo a recolher tudo da mesa. Levo os pratos e copos para a cozinha e, com movimentos automáticos, começo a lavar a louça, tentando deixar tudo o mais organizado possível. Gosto de acordar com a casa em ordem, me dá uma sensação de controle em meio ao caos. Finalizo a noite com um banho quente, deixando a água levar um pouco da tristeza que insiste em permanecer. Visto algo leve e confortável, e vou deitar. Bento já me espera encolhido na cama, e sem dizer nada, se acomoda ao meu lado. E assim, silenciosamente, adormeço com ele ali, sendo meu pedaço de paz.
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