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quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 15

Pagina 15 – Capitulo 02.

Por Clara...

Nem acredito que estou em casa tão cedo assim. O silêncio da casa me abraça de um jeito gostoso, diferente da correria barulhenta do mercado. Ao entrar, dou de cara com o Bento, largado no sofá, dormindo de boca aberta como se tivesse passado o dia inteiro trabalhando. Aproveito o momento, pego o celular e tiro uma foto — dessas que a gente guarda só pra rir depois.

Chego mais perto e faço um carinho leve na sua barriguinha, com cuidado pra não assustá-lo. Ele abre os olhos devagar, percebe que sou eu e logo se espreguiça antes de pular para o meu colo, ronronando. Troco a água, limpo sua caixinha de areia e, como sempre, ele se esfrega nas minhas pernas em sinal de agradecimento. O pego de novo no colo e dou um beijo no pescocinho peludo. Em dias raros como esse, ele deixa — e hoje, pra minha surpresa, foi um desses dias.

Hoje foi um daqueles dias em que tudo o que eu queria era um prato feito por mim, com calma, com afeto. Sem pressa. Separei os ingredientes e organizei tudo sobre a pia — legumes frescos, arroz, temperos. Prendi o cabelo em um coque frouxo, deixando algumas mechas onduladas caírem naturalmente ao redor do rosto. Comecei cortando os legumes, depois fui para o arroz, cebola, alho… aos poucos, a cozinha se encheu de aromas que aquecem o coração. Um jantar simples, saudável, mas cheio de significado — como se cada corte e cada mistura fossem um jeito de cuidar de mim.

Ao perceber algumas cervejas esquecidas na geladeira, não resisti — abri uma, senti o estalo da tampinha, e fui saboreando aos poucos enquanto as tiras de carne douravam na frigideira, chegando ao ponto exato que gosto. O cheiro era convidativo, e com a garrafinha na mão, comecei a montar a pequena mesa da minha sacada. Coloquei os pratos, os talheres e fui ajeitando tudo com calma. A vista, o clima ameno da noite e o som leve da cidade ao fundo tornavam aquele momento ainda mais especial. Aos poucos, fui gostando do que via — da mesa, da comida… e de mim ali, em paz.

Faz poucos meses que terminei um relacionamento onde investi tudo de mim. Planejei uma vida inteira ao lado de alguém que, no fim, não soube valorizar nem metade do que ofereci. Sonhei, me entreguei, construí castelos onde só havia areia. Fiz tudo o que alguém faz quando deseja verdadeiramente dividir a vida com outra pessoa. Agora, com o jantar pronto e o cheiro bom tomando conta do ambiente, começo a montar meu prato. Bento, como sempre, se enrosca nas minhas pernas, pedindo com os olhos aquele pedacinho de carne que ele sabe que vai ganhar — e, claro, ganha. Porque, no fim, ele nunca me decepciona.

Enquanto saboreava cada garfada com calma, observando os carros e pessoas apressadas na avenida lá embaixo, minha mente vagava por memórias que ainda ardiam. Refletia sobre minha vida, sobre os caminhos que escolhi e, principalmente, onde foi que errei. Me perguntava se deixei escapar sinais de que aquela relação não era tão sólida quanto imaginei. Se em algum momento hesitei, ou se fui cega demais para ver que não éramos mais as mesmas. As palavras daquele último dia ainda ecoavam dentro de mim — duras, injustas, mas inevitáveis. Ao terminar o prato, levei à pia e deixei a louça para depois. No mesmo embalo, fui até a geladeira, peguei mais uma cerveja e voltei à sacada, disposta a brindar, nem que fosse à minha própria solidão.

Bento, como se entendesse meu silêncio carregado, salta com leveza para a cadeira ao lado e se acomoda como um verdadeiro guardião da minha solidão. Dou uma risada baixa, abafada, só pelo jeito dele se espichar todo, dono de si. Volto então para dentro de mim, me sabotando mais uma vez. Procurando falhas, detalhes, gestos mal interpretados — qualquer coisa que justificasse o fim. Mesmo sabendo que essa busca não levaria a lugar nenhum além da dor, pego o celular como quem pega uma esperança velha, e digito mais uma mensagem. Mais uma tentativa. Mais uma que provavelmente vai ficar no vácuo junto com todas as outras. E mesmo assim, eu envio.

Lágrimas escorrem sem aviso, quentes, silenciosas, como se meu corpo soubesse antes de mim o peso que eu carrego. Me pergunto até quando essa angústia vai durar. Até quando esse buraco no peito vai se fazer presente, esse medo sufocante de nunca ser o bastante. Medo de não ser suficiente pra alguém. Medo de não ser amada de forma inteira. De nunca construir aquilo que sempre desejei com mais força do que coragem: uma família. Uma casa onde eu não precise me perguntar se estou sendo demais ou de menos. Onde eu possa apenas existir, e ainda assim ser escolhida todos os dias.

Ao perceber o quão tarde está ficando, me levanto devagar, ainda sentindo o peso dos pensamentos, e começo a recolher tudo da mesa. Levo os pratos e copos para a cozinha e, com movimentos automáticos, começo a lavar a louça, tentando deixar tudo o mais organizado possível. Gosto de acordar com a casa em ordem, me dá uma sensação de controle em meio ao caos. Finalizo a noite com um banho quente, deixando a água levar um pouco da tristeza que insiste em permanecer. Visto algo leve e confortável, e vou deitar. Bento já me espera encolhido na cama, e sem dizer nada, se acomoda ao meu lado. E assim, silenciosamente, adormeço com ele ali, sendo meu pedaço de paz.

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