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sábado, 6 de setembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 59

 Continuação  por Verônica....

Saindo do pequeno embaraço de Clara, peguei um copo descartável, coloquei um pouco de café e caminhei até meu irmão. Ele me lançou um olhar rápido e, ao perceber que Clara estava por perto, voltou-se para ela:

— Clara, você ficará com o Bruno para ajudá-lo a embalar e organizar as prateleiras do freezer… — começou.

Engoli um gole de café rápido demais e, inevitavelmente, engasguei. Uma tosse súbita me dominou, arrancando olhares surpresos.

— Tudo bem pra você? — meu irmão perguntou, inclinando-se levemente, o olhar cheio de preocupação.

Clara apenas assentiu, segurando o copo de café com um cuidado quase teatral, e eu mal pude deixar de notar o jeito que ela o segurava, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Um pequeno detalhe, talvez, mas que me arrancou uma risadinha interna.

— Tudo bem, só… — tentei falar entre uma tosse e outra — apenas bebi o café rápido demais.

Ele franziu levemente a testa, ainda preocupado, enquanto eu já me recompunha, tentando recuperar a compostura.

Enquanto me acalmava, percebi Clara me observando de canto de olho, talvez com um misto de curiosidade e divertimento. Aquela simples situação — café, engasgo e risadas contidas — parecia ter transformado o galpão em palco de pequenas tensões engraçadas, sem que ninguém precisasse dizer uma palavra sobre o que realmente acontecia.

Voltei a respirar normalmente, segurando o copo com mais cuidado, e, por um instante, o silêncio entre nós três ficou apenas carregado de pequenas olhadas, gestos e distrações engraçadas. Nada explícito, nada declarado — apenas um momento leve, curioso, que deixava claro que Clara e eu ainda estávamos descobrindo algo uma sobre a outra, sem pressa, apenas observando.

Ao voltarmos para o mercado, encontrei a equipe já com a mão na massa — ou melhor, nos frios. E, claro, meus olhos foram direto para Clara.


Ela estava no açougue, ocupada com as tarefas que meu irmão havia designado: embalando os frios fatiados, pesando-os e organizando nas prateleiras do freezer. Cada movimento seu parecia eficiente e concentrado, mas eu me peguei observando cada gesto com uma atenção que não era totalmente consciente. A inclinação, a forma como ajustava os pacotes, até a maneira como o cabelo caía sobre o ombro… era quase obsessivo, e eu nem sabia direito por quê.

Pelo visto, os dois estavam se dando muito bem. Bem demais, para meu gosto. Observá-los interagindo de forma tão natural, com Clara rindo discretamente das piadas do Bruno e ajustando o trabalho com facilidade, me provocava uma mistura de desconforto, diversão e aquela curiosidade silenciosa que ainda não sabia bem como nomear..


Enquanto caminhava pelo espaço, tentando manter a postura de supervisora, percebi que qualquer gesto simples de Clara — uma inclinação, uma risadinha ou o modo como ajustava os pacotes — tinha o poder de tirar meu foco completamente. Eu me pegava lembrando de detalhes que provavelmente ninguém mais notaria, absorvendo cada pequeno movimento como se fosse parte de um quebra-cabeça que eu ainda não sabia decifrar.

Era engraçado e estranho ao mesmo tempo. Clara estava ali, fazendo seu trabalho, sem nenhuma consciência do efeito que causava em mim. Nada explícito, nada declarado… apenas uma observação quase obsessiva, curiosa, que me fazia rir por dentro enquanto tentava parecer séria para os demais.


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O acaso a meu favor - Página 58

 Por Verônica....

Enquanto explicava as tarefas do dia, percebi que, no fundo do galpão, ela não estava prestando a menor atenção. Seu olhar estava fixo… e, quando percebi onde exatamente, precisei me segurar para não rir.

Olhei diretamente para ela, depois para a direção que seus olhos apontavam, e confirmei minhas suspeitas. Então devolvi apenas um sorriso discreto com os olhos, como quem diz: te peguei.

A reação dela foi imediata: ficou sem jeito, vermelha, como se tivesse sido flagrada no pior dos crimes. Por dentro, eu mesma precisei conter a vontade de rir da cena. Era engraçado demais ver alguém implorar, em silêncio, por um buraco no chão para se esconder.

— Então, pessoal… — chamei a atenção de todos ali, ou quase todos — Esse é o Bruno, nosso novo colaborador. Ele ficará responsável pelo açougue.

Enquanto todos davam as boas-vindas, percebi Clara no fundo do galpão, olhando curiosa para Bruno. Por algum motivo, aquilo me deixou um pouco desconfortável, embora eu não conseguisse explicar exatamente por quê.

— Hoje, o Bruno irá desossar a peça bovina que chegou ontem. — Todos prestavam atenção, mas eu estava parcialmente distraída observando Clara.

Ela tentava alcançar a garrafa de café no topo da prateleira, esticando-se como se cada músculo pudesse conspirar a seu favor. Ficava na ponta dos pés, balançando levemente para frente e para trás, e eu juro que minha risada ameaçava escapar em plena reunião. Era impossível não admirar com tanta dedicação — e impossível não rir por dentro do desespero elegante da cena..

Deixei Igor com a palavra e fui ajudá-la antes que sua tentativa mirabolante terminasse em desastre. Meu irmão percebeu e apenas assentiu, sem imaginar o efeito que aquela simples garrafa e a determinação de Clara estavam causando em mim.

— Espera, Clara, deixa eu pegar isso pra você — disse, segurando a garrafa antes que ela tentasse de novo.

— Estava quase conseguindo! — respondeu, surpresa e um pouco emburrada, como se eu tivesse roubado seu momento de glória.

— Eu vi mesmo… — disse, rindo suavemente — Vi você olhando diretamente para… — mas parei, porque o modo como ela desviou o olhar me fez segurar outra risadinha. Havia algo engraçado naquela situação, e eu não queria estragar o momento.

— Vê… Verônica, eu… eu, bom… estava apenas… — gaguejou, tentando explicar, e eu agradeci mentalmente ao Igor por prender a atenção dos outros funcionários lá fora, impedindo que alguém testemunhasse nosso pequeno embaraço.

— Eu só estava prestando atenção ou… tentando acompanhar o que você dizia. — Suas palavras saíam meio atrapalhadas, e eu percebia, sem querer, como ela ficava desconcertada. Não pude evitar notar o charme que emanava de seu desespero: aquele olhar ainda preso no meu rosto me deixava totalmente vulnerável.

Para quebrar a tensão antes que alguém notasse, dei um passo atrás, contra minha própria vontade, tentando disfarçar a diversão e a curiosidade que me consumiam.

— Bom, dona Clara, não sei sobre o que você está falando, mas… — disse, apontando para uma cadeira abandonada no fundo do galpão, com um sorriso leve — Estava me referindo à cadeira.

Ela soltou um suspiro de alívio, claramente agradecida.

— Claro, a cadeira! — disse, mais calma agora. — Eu realmente estava pensando em pegar aquela cadeira. Ainda bem que você percebeu! Era bem provável que eu acabasse no chão…

Não consegui me conter e soltei uma risada nasal. Ela me olhou, ainda um pouco sem jeito, e bufou:

— Que foi? — perguntou, já ficando levemente irritada, mas sem perder o humor. — Ah! Me dá essa garrafa antes que o café esfrie!


E assim, entre risadas contidas, tropeços discretos e pequenas distrações, percebi que havia algo diferente naquele instante. Nada declarado, nada explícito — apenas uma sensação leve, curiosa, de que talvez estivessem começando a notar uma à outra de um jeito diferente, sem pressa.

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O acaso a meu favor - Página 57

 Continuação Por Clara....

Ao abrir automaticamente as portas sanfonadas de alumínio daquele lugar, todos nós entramos. Eu, já acostumado com a rotina, vou direto ao caixa e começo a ligar os computadores e ventiladores do local.


Vejo Augusto e Verônica trocando algumas palavras com o rapaz que estivera comigo lá fora há pouco  —  talvez estejam apenas se conhecendo. Um sentimento estranho me invade, como se alguém me observasse. Olho para os lados, depois para trás, e percebo Verônica desviando o rosto enquanto pergunta algo ao rapaz. Um leve sorriso de canto surge em meus lábios.

Quando menos espero, a turma dos dois turnos de repositores chega ao mercado. Assim que me notam, cumprimentam primeiro Verônica e Augusto, que estão lá na frente, e logo vêm em minha direção com a algazarra de sempre.

Seguimos juntos até o espaço destinado ao açougue, e então levo um baita susto: os freezers já estavam impecavelmente instalados e brilhando no centro do mercado. Minha reação não foi diferente da minha animação. Os meninos abriram uma das portas e viram que a temperatura estava perfeita para receber as carnes. Para não perder a piada, soltei:

— Ainda bem, as carnes da minha casa já até acabaram mesmo.

Ao ouvirem meu comentário, os meninos caíram na risada, e alguns até concordaram comigo.

Quando menos esperamos, Juliana se aproxima de nós e se junta à pequena roda diante dos freezers. Seus olhos percorrem o brilho metálico das portas como quem não vê ali nada além de um detalhe banal. Então, com a voz carregada de ironia, solta:

— Até que enfim, algo diferente neste mercado.

O tom é o mesmo que ela passou a cultivar de um dia para o outro, quase como um adereço que veste para provocar. Desde a vez em que insinuou que eu estava recebendo favores de Verônica, por conta de nossa aproximação, nunca mais a vi com o mesmo olhar. Mal sabe ela que entre nós não há nada além do profissional — talvez, no máximo, uma amizade leve, quase rasa, que nasceu sem intenção.


Deixamos o salão principal e seguimos para o galpão, nos fundos do supermercado, onde batemos nosso ponto. Aquele espaço sempre me pareceu um improviso: uma mesa simples, o cheiro de café passado às pressas, alguns pacotes de biscoito esquecidos. Também é lá que fica o bebedouro, testemunha silenciosa de nossas pausas rápidas. Verônica já comentou que em breve isso mudará. E, de fato, espaço não falta para transformar aquele canto esquecido em algo mais digno, mais organizado, à altura dos que trabalham ali.


Ainda faltavam alguns minutos para a abertura do mercado quando Verônica, acompanhada do irmão, apareceu no galpão chamando nossa atenção. Eu, por azar ou sorte, tinha acabado de colocar o mergulhão na água para ferver. Então fiquei naquela situação ingrata: prestar atenção no que eles diziam e, ao mesmo tempo, vigiar a panela como se fosse um tesouro prestes a explodir. No fim, parecia personagem de ditado popular, com um olho no padre e outro na missa.


Enquanto eles falavam sobre as tarefas do dia, eu, ao invés de me concentrar no assunto, estava ocupado demais encarando a boca da Verônica — e esquecendo da água fervendo. Sorte minha estar no fundo do galpão, onde ninguém poderia notar a cena patética do meu hiperfoco.

De repente, sinto os olhos dela sobre mim. E, pior, ela percebe exatamente para onde eu estava olhando. O que ela me devolve não é um sorriso aberto, mas aquele meio-riso nos olhos, que denuncia tudo sem dizer nada. Eu, por dentro, só pensava: pronto, agora acabou pra mim. Se um buraco tivesse se aberto no chão naquela hora, eu teria mergulhado de cabeça sem pensar duas vezes.


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O acaso a meu favor - Página 56

 Por Clara....

Despertador tocando, Bento e eu nos espreguiçando juntos — ele com aquele ar de rei preguiçoso, eu tentando reunir forças para levantar. A realidade bate forte na nossa cara, mas graças a Deus tenho um emprego para ir. Pego o celular, olho a tela e não vejo só as horas, mas a data também: vinte e sete de junho. Logo logo, ao virarmos a página para julho, aquele mercado vai ferver. A famosa alta temporada de Caldas chegando, trazendo movimento, gente de todo canto, e junto, a correria dobrada. “Por quê?”, alguns sempre perguntam. A resposta é simples: por causa das águas termais da cidade. E detalhe — termais de verdade, quentinhas, uma riqueza daquelas que atrai milhares de pessoas de todos os lados do país.

Minha rotina de todos os dias é quase um ritual sagrado. Primeiro, a caixa de areia do Bento — prioridade absoluta. Depois, encho o potinho de ração, troco a água e ganho aquele olhar de aprovação felina, como se eu tivesse passado no teste diário de “boa tutora”. Antes de sair, claro, um beijo no meu peludo, porque ele merece mais do que eu. Só então sigo para o banho.

Hoje decidi deixar os cabelos soltos. O bom do meu charme enrolado é que, mesmo quando eu olho no espelho e acho que estão bagunçados, todo mundo insiste em dizer que parece que passei horas arrumando. Bobinhos. Se soubessem que é só deixar secar ao natural... mas confesso, eu adoro o mistério que isso cria.

Já aconteceu com vocês isso? Passar horas lavando, hidratando, cuidando com todo amor e paciência do mundo… e o cabelo simplesmente não colaborar, sair com aquele resultado mais ou menos, sem graça? Agora, basta eu deixar ele ali três dias, sem uma gota de creme ou hidratação, e quando finalmente resolvo dar um jeito meia boca… pronto! Ele resolve ficar perfeito, como se tivesse sido tratado em salão de luxo. Eu fico entre a gratidão e a indignação, confesso. Mas fazer o quê, né? É o que temos, senhores.

Saindo de casa e deixando tudo em ordem, sigo meu caminho de todos os dias rumo ao mercado. Por mais rotina que seja, nunca me canso de levantar os olhos e ver os casais de araras-azuis cobrindo o céu de Caldas. É quase uma pintura viva, uma cena que me arranca suspiros mesmo quando estou atrasada. É raro ver uma delas sozinha, estão sempre em dupla, como se uma completasse a outra. Só que, vou ser sincera, o barulho que fazem logo cedo não combina em nada com a beleza que carregam. Parece até briga de vizinhos de apartamento.


Chegando em frente ao mercado, percebo que ainda estou dez minutos adiantada. Aproveito para abrir a tela do celular e me atualizar da escala que a Verônica mandou na noite anterior. Estou tão concentrada nos nomes e horários que quase não percebo uma moto parar ali na lateral do supermercado.

Um rapaz alto, de pele parda e cabelos ondulados, desce ajustando o capacete no braço. O cabelo ondulado caindo um pouco sobre a testa dá a ele um ar despreocupado. Vem em minha direção e, com um sorriso meio educado, meio tímido, pergunta:

— Você trabalha aqui, moça?

Levanto os olhos, o analiso rápido — nada ameaçador, parecia mais curioso do que qualquer outra coisa — e, de forma empática, respondo:

— Sim, trabalho aqui. O mercado vai abrir daqui alguns minutos.

Ele assente, olhando em volta como quem mede o lugar pela primeira vez.

Quando menos percebo ele se acomoda a alguns centímetros de mim e isso já me deixa em alerta.

Ele se aproxima, ajeitando o capacete no braço.

 — Então, me diz uma coisa… aqui o movimento é forte mesmo na temporada?

Eu arqueando a sobrancelha o pergunto sem cerimonia: — É, mas por que a entrevista tá acontecendo comigo? Você é do RH disfarçado?

Ele ri, levantando as mãos como se se entregasse: — Calma, moça. Só tô curioso. É que… acho que vou trabalhar aqui também.

— Trabalhar? Aqui? — faço uma cara de espanto, mas meio desconfiada — Tá de brincadeira.

 — Verdade. Sou o novo açougueiro.

Ao ouvir oque me disse cruzo os braços e fingi avaliá-lo de cima a baixo: — Hum… açougueiro? Você tem cara mais de quem estraga carne do que corta.

Ao ouvir oque saiu de mim, ele coloca a mão no peito fingindo estar ofendido: — Olha, isso dói, viu? Eu trato as peças de carne melhor do que muita gente trata as pessoas.

Eu já começando cair na brincadeira dou uma risada, balançando a cabeça: — Se for verdade, acho que vamos dar conta de trabalhar juntos. Mas vou ficar de olho.

Ele me olhando com uma falsa cara de poucos amigos me responde:

 — Pode ficar. Mas cuidado, viu? Se você pisar na bola, corto seu monitoramento em bifes!

Ambos acabam rindo, quebrando a tensão do primeiro contato.

Quando menos percebemos, uma caminhonete muito conhecida estaciona ao lado do mercado. Era a caminhonete do Igor. Logo em seguida, eu e o... bem, não cheguei a perguntar o nome dele, nos ajeitamos. Pouco depois, chega também o Augusto.

Vejo o Igor e a Verônica descerem da caminhonete e, no instante em que meus olhos se cruzam com a beleza daquela mulher, sinto não apenas meu coração bater em falso, mas também as pernas fraquejarem. Ela, com aquele olhar sério e os cabelos impecavelmente ondulados caindo até os ombros... Não resisti e desviei o olhar, tentando evitar que a situação soasse ainda mais estranha do que já estava.

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